GILVAN MARQUES
SÃO PAULO - Para aumentar seus rendimentos, motoristas de aplicativos tem aceitado fazer sexo com passageiros em troca de dinheiro.
Ao longo de três semanas, a reportagem da Folha ouviu relatos e depoimentos de condutores cadastrados na Uber, na 99 e no InDriver que confirmaram a existência da prática. Todos pediram para não terem seus nomes divulgados para evitar punições. Procuradas, as empresas afirmaram que os envolvidos podem ter suas contas desativadas.
Na maioria dos casos, tanto o passageiro quanto o motorista são do sexo masculino. Há relatos de condutores que receberam ofertas de passageiras mulheres que queriam pagar a corrida com sexo em vez de dinheiro, mas estes são mais raros.
Segundo os motoristas, existe uma espécie de código, com sinais que podem ser enviados discretamente por quem estiver interessado no sexo.
O mais comum deles é a letra "b" -uma referência a sexo oral- escrita no chat da plataforma e enviada pelo passageiro ao motorista antes de entrar no carro. Ele foi criado por usuários em resposta a apps que detectam automaticamente e punem quem usa o espaço para escrever termos pornográficos.
A abordagem inicial pode ocorrer também durante o trajeto através de olhares no retrovisor, gestos e perguntas.
Na sequência, as partes combinam o que desejam fazer (masturbação, sexo oral ou anal) e os valores que serão cobrados. O ato pode ser praticado com o carro em movimento, parado em ruas pouco movimentadas, em um motel (bancado pelo cliente) ou até na casa do passageiro.
Felipe (nome fictício), 31, trabalhava como barman em São Paulo e ganhava R$ 100 por noite. Há quatro anos, decidiu virar motorista para aumentar seu rendimento. Ele diz sempre ter sido assediado por passageiros, até que um dia resolveu aceitar uma das propostas pela necessidade de ganhar mais.
Essa pessoa ofereceu R$ 150 para fazer sexo oral, afirma Felipe -o valor era metade do que ganhava por dia com as corridas. Segundo ele, a primeira coisa que pensou é que esse ganho extra poderia ajudar a completar o tanque de gasolina.
Em quatro anos, o profissional diz nunca ter sido vítima de golpes ou de roubos, mas já foi flagrado uma vez pelo segurança de um estacionamento na Vila Mariana, zona sul da capital, enquanto recebia sexo oral de um passageiro. O guarda não chamou a polícia.
Ele diz que as relações sexuais geralmente ocorrem sem o uso de camisinha e que se protege apenas com a PrEP -uma combinação de medicamentos que impede a contaminação pelo HIV, mas não outras infecções.
Felipe diz ainda que uma tática para conseguir clientes é estacionar o carro próximo a saunas ou boates e puxar conversa durante o trajeto, discretamente.
O também motorista Marcelo (nome fictício), 22, afirma já ter ficado com cerca de 50 passageiros desde que começou a trabalhar na área, há dois anos -em alguns casos, não chegou a cobrar pelo sexo.
O valor de seu programa pode custar entre R$ 50 e R$ 150, mas já chegou a faturar R$ 200. Isso equivale a quase todo o lucro diário que tem com as corridas. O pagamento pode ser feito em dinheiro ou Pix.
Segundo pesquisa divulgada em maio pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o ganho médio de um trabalhador de aplicativos de transporte ou mercadorias no Brasil é de R$ 1.900 por mês.
Marcelo conta que já tinha escutado de outros colegas histórias sobre sexo com passageiros, mas que se surpreendeu ao ser abordado pela primeira vez.
Na ocasião, estava dirigindo quando o passageiro, com o carro em movimento, começou a tocá-lo. Por isso, o motorista parou o veículo e os dois fizeram sexo ali mesmo, antes do fim da corrida.
Ele afirma que espera a abordagem vir do próprio passageiro pessoalmente e que nunca responde a códigos enviados pelo chat, pois tem medo que as mensagens virem provas contra ele.
Diz ainda que aumentou a quantidade de programas desde dezembro do ano passado, em meio ao aumento do preço da gasolina.
Para Luciane Soares, professora de sociologia na UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense), a prostituição entre motoristas e passageiros representa a "precarização dentro da precarização".
"Os aplicativos de transporte deixaram de ser um complemento de renda e passaram a ser a renda principal de boa parte da população desempregada. O quadro se acentua com a pandemia", avalia ela.
"A prática é o resultado de uma crise quando parte da população não consegue mais sustentar o preço dos combustíveis e as contas não fecham. Você tem realmente algo aí com elemento de crueldade."
Além das corridas, os condutores também têm conquistado parte de sua clientela através das redes sociais e de aplicativos de relacionamento como Grindr, que é voltado para o público LGBTQIA+. Nestes casos, a pessoa entra em contato, combina o valor e o destino, como se fosse uma viagem particular e o sexo entra no pacote.
Como a prostituição não é crime no Brasil, motorista e passageiro não podem ser punidos pela prática, diz a advogada criminalista Maria Pinheiro, da Rede Feminista de Juristas. "Mas, na hipótese de fazerem isso de maneira pública, existe o delito de ato obsceno. E aí, nesse caso, ambos poderiam ser responsabilizados criminalmente", ressalta
A pena para o crime é de três meses a 1 ano de detenção, mas também pode ser convertida em cesta básica ou em serviços prestados à comunidade.
Em nota enviada à Folha, a Uber ressalta que, de acordo com seus códigos de conduta, "qualquer comportamento que envolva violência, conduta sexual, assédio ou discriminação ao usar o aplicativo resultará na desativação da conta".
"Isso também se estende ao que é digitado nas mensagens que podem ser enviadas dentro do app, já que o respeito entre todos da comunidade deve ser mantido em todas as interações "" virtuais ou reais", diz o aplicativo. A 99 não quis se manifestar e a InDriver não retornou o contato da reportagem.
Eduardo Lima de Souza, presidente da Amasp (Associação de Motoristas por Aplicativos de São Paulo), classificou os casos como uma prática isolada.
"A gente não tem nem como atribuir [ao aumento dos combustíveis ou taxas de apps] porque está todo mundo trabalhando, fazendo um dinheirinho ali. Então, a gente acredita que, dentro da classe, exista aquele tipo de pessoa que se propõe a isso."
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