O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fez transações semelhantes às que levantaram suspeitas contra o seu filho Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na investigação do caso da "rachadinha". Parte delas foram identificadas na quebra dos sigilos bancário e fiscal anulada pela Quinta Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Os dados mostram uso de dinheiro vivo pelo presidente para ajudar o filho a adquirir imóveis e dinheiro de funcionária de seu antigo gabinete na Câmara dos Deputados abastecendo as contas de Fabrício Queiroz, suposto operador financeiro do esquema.
Até mesmo os repasses identificados da família Queiroz para a conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro são maiores do que os comprovados para a dentista Fernanda Bolsonaro, mulher de Flávio.
Informações públicas também indicam semelhanças entre a compra da casa na Barra de Jair Bolsonaro às transações imobiliárias que levaram ao aprofundamento de investigações contra Flávio.
Embora seja mencionado no material recolhido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, o presidente não foi alvo das apurações. Em razão do cargo, ele só pode ser investigado por atos cometidos durante o mandato.
O filho mais velho do presidente é acusado pelo MP-RJ de liderar um esquema para se apropriar de parte do salário de 12 funcionários fantasmas em seu gabinete na Assembleia entre 2007 e 2018, período em que Queiroz esteve subordinado ao senador.
De acordo com o MP-RJ, foram desviados R$ 6,1 milhões dos cofres públicos, dos quais R$ 2,08 milhões comprovadamente repassados para Queiroz. Investigadores afirmam que outros R$ 2,15 milhões sacados das contas dos supostos funcionários fantasmas também podem ter sido disponibilizados à organização criminosa.
A defesa do senador nega as acusações e afirma que a denúncia do MP-RJ tem "erros bizarros". O Planalto não respondeu até a publicação desta reportagem.
A denúncia afirma que os recursos da "rachadinha" circularam prioritariamente por meio de dinheiro vivo. Segundo a acusação, um meio de lavagem de dinheiro foi a aquisição de imóveis. Em janeiro, Flávio fez a 20ª transação imobiliária ao adquirir uma mansão em Brasília.
O presidente se envolveu diretamente com dinheiro vivo numa das transações imobiliárias de seu filho. A declaração para Imposto de Renda do senador informa que, em 2008, Jair Bolsonaro lhe emprestou R$ 55 mil em espécie.
Esse empréstimo, bem como os realizados da mesma forma por Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e ex-assessores do presidente, deram lastro financeiro para a compra de 12 salas comerciais por Flávio em 2008. Foram no total R$ 230 mil de empréstimos com recursos em espécie.
O uso de dinheiro vivo pelo presidente também foi declarado em suas campanhas.
Transações em espécie não configuram crime, mas podem ter como objetivo dificultar o rastreamento da origem de valores obtidos ilegalmente. É o caso da "rachadinha" descrita pelo MP-RJ.
A prática também contraria declaração do próprio presidente ao jornal Folha de S.Paulo em janeiro de 2018, quando negou manter dinheiro vivo em casa.
"Eu não guardo dinheiro no colchão em casa. Tem muita gente que declara. Até a Dilma [Rousseff, ex-presidente] declarou uns cento e poucos mil. Eu nunca declarei isso daí", disse ele na ocasião.
Bolsonaro também realizou transação imobiliária com características suspeitas de acordo com critérios do Coaf, assim como Flávio.
Em 2009, o presidente adquiriu sua casa na Barra da Tijuca por R$ 400 mil. Quatro meses antes, a antiga proprietária havia comprado o imóvel por R$ 580 mil. Bolsonaro teve um "desconto" de 30% em comparação ao valor pago antes.
Desvalorização semelhante foi constatada na aquisição por Flávio de dois imóveis em Copacabana. Ele declarou em escritura ter pago R$ 310 mil pelos apartamentos, quando ambos custaram aos antigos proprietários, um ano antes, R$ 440 mil somados.
O senador é acusado de ter pago "por fora" R$ 638,4 mil em dinheiro vivo pela compra desses imóveis. O MP-RJ identificou, após a quebra de sigilo bancário, que a conta da pessoa responsável pela venda dos dois imóveis a Flávio teve depósito deste valor em espécie no mesmo dia da transação.
Flávio revendeu os apartamentos pouco mais de um ano depois por R$ 1,1 milhão, obtendo um lucro de R$ 813 mil na "transação relâmpago". O MP-RJ afirma que a operação permitiu que o dinheiro ilegal da "rachadinha" passasse a integrar o patrimônio oficial do senador, a partir de revenda dos apartamentos e a declaração à Receita Federal.
Para investigadores, a desvalorização repentina pode indicar possível pagamento não declarado, a fim de ocultar o patrimônio do comprador de origem ilegal. O presidente, cuja casa permanece em seu nome, já negou ter adotado tal prática.
A relação financeira comprovada com Queiroz também é mais intensa com a família do presidente do que com a de Flávio, segundo os dados bancários da investigação.
A primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu o depósito de 27 cheques entre 2011 e 2016 que somam R$ 89 mil, de acordo com a quebra de sigilo bancário de Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiar.
Já a conta da mulher do senador, a dentista Fernanda Bolsonaro, registra apenas o depósito de R$ 25 mil em espécie uma única vez. O aporte antecedeu o pagamento da entrada de um imóvel.
O MP-RJ identificou que Queiroz pagou em dinheiro ao menos uma vez a mensalidade escolar das filhas do senador, que custavam R$ 6.942,55 somados. Há outros 114 boletos de mensalidade escolar e plano de saúde da família de Flávio quitados com dinheiro vivo cuja origem não é identificada.
As quebras de sigilo não identificaram prática semelhante com o presidente. Mas ele mesmo declarou em entrevista que Queiroz também pagava algumas de suas contas.
"O Queiroz pagava conta minha também. Ele era de confiança", disse o presidente, em entrevista à TV Bandeirantes em dezembro de 2020.
Apontado como operador financeiro do esquema, Queiroz foi nomeado no gabinete de Flávio por indicação do presidente. Eles são amigos desde 1984, quando se conheceram na Brigada Paraquedista do Exército.
A filha de Queiroz, Nathalia, foi lotada tanto no gabinete de Flávio na Assembleia como no do presidente, na Câmara. Dados da quebra de sigilo da personal trainer mostram que a rotina de repasses para o pai, que segundo o MP-RJ é a origem de boa parte da "rachadinha", foi constante também quando ela era subordinada de Jair Bolsonaro.
A denúncia contra Flávio deve ser arquivada caso a anulação da quebra dos sigilos seja mantida. O MP-RJ afirma que ainda estuda se recorrerá da decisão do STJ. A corte ainda tem outros dois julgamentos pendentes que podem afetar as provas do caso.
A Promotoria também tem investigação aberta contra o vereador Carlos Bolsonaro, sob suspeita de empregar, assim como o irmão, funcionários fantasmas em seu gabinete na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
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