Lenísia, 68, do Rio de Janeiro, tem câncer no pâncreas e metástases no fígado e no pulmão. Na semana passada, com muita dor, tentou internação em três hospitais públicos do Rio, sem sucesso. A família entrou com ação judicial e nem mesmo com uma liminar favorável conseguiu atendimento.
Elisandra Kern, 32, de Novo Hamburgo, teve câncer de mama confirmado em biópsia em 28 de fevereiro. A UBS local encaminhou pedido de consulta com mastologista, mas até agora não foi agendado.
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Edna Paiva, 58, de São Paulo, teve a terceira sessão de quimioterapia suspensa no fim de março. "O tumor que eu tenho é agressivo. Tenho muito medo que, sem tratamento, ele se espalhe", afirmou.
Com a pandemia de coronavírus, a assistência ao câncer no país tem sofrido prejuízos de todas as ordens, de consultas e exames cancelados a sessões de químio e radioterapia e cirurgias adiadas por tempo indeterminado.
Só na área de diagnóstico, a queda no movimento é de 70% a 80%, segundo a SBP (Sociedade Brasileira de Patologia). Em muitos casos, porém, são os próprios pacientes que estão cancelando procedimentos com medo de serem infectados pelo coronavírus nos hospitais.
Sociedades médicas e profissionais da área defendem a manutenção das medidas de isolamento, mas alertam que, dependendo do tipo de tumor e do estágio da doença, há mais risco de morrer pelo câncer do que de Covid-19.
"Estamos com medo que, depois da pandemia de coronavírus, tenhamos uma epidemia de casos avançados de câncer. Temos que atender bem os pacientes com Covid-19, mas também dar suporte de atendimento aos pacientes oncológicos", diz o médico patologista Clóvis Klock, conselheiro da SBP.
Nesta semana, começou uma mobilização de entidades para que os gestores públicos e privados criem áreas "Covid-free" para câncer, ou seja, hospitais que pudessem seguir com atendimentos oncológicos seguindo normas de segurança para evitar o contágio do coronavírus.
A proposta, que vem sendo adotada na Itália, será encaminhada ao novo ministro da Saúde, o oncologista Nelson Teich, que já se manifestou favorável à demanda de que a oncologia não pode deixar de fazer atendimentos.
Segundo cirurgião Alexandre Ferreira Oliveira, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica, na era pré Covid-19, o país já enfrentava muitos gargalos com o atendimento oncológico no SUS, com muitos diagnósticos tardios, mas, agora, a situação está muito pior.
"A maioria das clínicas de diagnóstico nos estados estão fechadas. Pararam de fazer exames como endoscopia, colonoscopia, mamografia e outros exames radiológicos. As consultas eletivas foram suspensas. Ou seja, os pacientes não estão sendo nem diagnosticados", diz ele.
Mesmo quando há uma hipótese diagnóstica, é grande a dificuldade de confirmá-la por meio de biópsia, procedimento necessário em 98% dos tumores, por conta da interrupção dos serviços.
Segundo Clóvis Klock, dependendo do tipo de tumor o diagnóstico tem que ser feito o mais breve possível, como tumores de pulmão e de alguns tipos de linfoma. "O paciente pode ser diagnosticado tardiamente e perder a chance de uma cirurgia, uma rádio ou quimioterapia curativas."
De acordo com a mastologista Maira Caleffi, presidente voluntária da Femama (Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama), as listas de regulação oncológicas nos municípios estão praticamente paradas.
"Essas listas têm pacientes para fazer biópsia, outros com o exame positivo [para câncer], outros para a primeira consulta com oncologista, outros para cirurgia. As listas não estão andando."
Oliveira relata que, mesmo que o paciente consiga superar todas essas etapas, muitos hospitais pararam de operar. "Todo mundo parou de operar por conta da Covid-19. Só opera emergências, apendicites, acidente, traumas. Parou-se com as cirurgias eletivas. Mas câncer não é eletivo. Nem sempre é emergência, mas é uma urgência. Quanto mais rápido tratar, operar, melhor o prognóstico."
Segundo ele, os hospitais que não têm pacientes com Covid-19 deveriam estar atendendo casos oncológicos enquanto há tempo para isso --ou seja, enquanto a rede hospitalar como um todo não entrou em colapso.
"Precisamos ter hospitais 'Covid-free' para câncer. Todos os pacientes com suspeita de câncer ou de câncer confirmado iriam para lá. Em muitas cidades, não conseguiremos isso porque os hospitais atendem várias especialidades, mas há outras com possibilidade de fazer isso. Senão vamos ter duas grandes taxas de mortalidade, por Covid-19 e por câncer."
Maira Caleffi também defende a ideia. "É o momento. Pode ser que tenhamos mais dificuldade daqui a um mês para operar esses pacientes."
Segundo Oliveira, os próprios pacientes estão inseguros de se submeterem a uma cirurgia neste momento. "Tinha uma cirurgia agendada para segunda (19) e o paciente decidiu não operar. 'Não vou operar não, doutor, estou com medo'. Tudo bem que é um câncer de tireoide, dá para esperar dois, três meses."
Para Klock, o medo de pacientes e profissionais da saúde é plenamente justificável. "Mas se o paciente tem uma suspeita clara, um sintoma que possa ser um tumor, ele não pode postergar o diagnóstico."
Uma das propostas é que nos hospitais "Covid-free" pacientes sejam testados previamente para o coronavírus e, eventualmente, submetidos a uma tomografia na véspera da cirurgia para checar se não há comprometimento do pulmão. Funcionários também passariam por testes.
"Precisamos dar condições para que os nossos pacientes sejam atendidos. Vamos deixar que uma paciente com câncer de mama que tem chance de fazer cirurgia conservadora esperar quatro, cinco meses e ter o quadro muito piorado? 'Timing' [tempo] é muito importante na oncologia."
Para Maira Caleffi, a área de oncologia precisa de um direcionamento do Ministério da Saúde para que os governos estaduais identifiquem as melhores soluções locais, criando critérios e alternativas de atendimento.
"Mandaram as pessoas ficarem em casa mas não disseram o que aquelas que estão suspeita de câncer ou com diagnóstico já fechado devem fazer, para qual lugar devem ir. Muitos pacientes estão perdidos no sistema de saúde, não conseguem informações concretas sobre o futuro de seu tratamento."
A psicóloga Luciana Holtz, presidente do Instituto Oncoguia, diz que muitos pacientes do SUS e outros vinculados a planos de saúde estão inseguros com essa indefinição de suas terapias. Nos últimos dias, o instituto recebeu 12 queixas de cancelamento de exames, cirurgia, químio e radioterapia.
"Está faltando uma conversa no sentido de dizer: 'dá para cancelar, vamos pesar risco e benefício, talvez dê para fazer mais uma sessão de químio e jogar a cirurgia mais pra frente", afirma Holtz.
O Oncoguia atendeu dois casos de pacientes que já estavam internados em um hospital público de São Paulo para operar seus tumores, mas, por conta do aumento de casos de Covid-19, foram mandados para casa sem terem uma nova data agendada para a cirurgia.
"O paciente precisa de uma mensagem clara. Que lhe digam 'tudo bem, o seu caso dá para esperar', ou 'tudo bem, não dá para esperar, mas venha porque tomamos as precauções e você estará seguro'."
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