Conteúdo verificado: Panfletos e posts no Facebook segundo os quais Marília Arraes, candidata à Prefeitura do Recife, quis proibir a leitura da Bíblia na Câmara dos Vereadores e que é impossível cristãos apoiarem sua eleição.
São enganosos os panfletos e posts afirmando que a deputada federal Marília Arraes (PT), candidata à Prefeitura do Recife, quis proibir a leitura da Bíblia nas sessões da Câmara dos Vereadores da capital pernambucana quando era vereadora. Os materiais alegam que cristão de verdade não vota na petista e estampam um trecho de uma fala da candidata retirada de contexto.
Os conteúdos verificados dão a entender que a petista seria contra a Bíblia, mas escondem que a frase destacada envolvia uma defesa do estado laico e não uma ação anti-Bíblia.
A frase de Marília que aparece no panfleto é a seguinte: Inclusive, na edição do novo regimento, me posicionei contra se manter o costume de se ler passagens da Bíblia e se falar em nome de Deus. A candidata fez essa declaração em 2017, em entrevista à Folha de Pernambuco, ao comentar a decisão do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) de recomendar a proibição de práticas religiosas na Câmara.
Os panfletos não são assinados e, após um pedido da candidata, a Justiça Eleitoral determinou que eles não fossem mais distribuídos.
O site do PT, partido da candidata, publicou um texto afirmando ser falso que Marília seja contra a Bíblia e os cristãos. O Comprova procurou a assessoria de imprensa da candidata, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.
As informações foram verificadas pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 28 veículos de imprensa do Brasil para combater desinformações e conteúdos enganosos na internet. Participaram das etapas de checagem e de avaliação da verificação jornalistas de Jornal do Commercio, Folha de S.Paulo, NSC Comunicação, Marco Zero Conteúdo, Coletivo Bereia, UOL, Gaúcha ZH, Jornal Correio, Estadão, Rádio Band News FM e A Gazeta.
O Comprova buscou reportagens antigas, em jornais de Pernambuco e nos sites e redes sociais da Câmara de Vereadores do Recife, para descobrir se a frase atribuída a Marília Arraes existia e qual o contexto em que teria sido dita. A reportagem buscou também o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), para ter acesso à resolução que motivou a declaração da candidata, e o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-PE), para saber quais as medidas judiciais em torno da distribuição dos panfletos e publicações na internet.
A página que publicou as postagens foi procurada, bem como a assessoria de comunicação da petista e do candidato do PSB, João Campos. Também foram consultadas publicações nas páginas de redes sociais de ambos, e entrevistas anteriores, para saber o posicionamento de Marília sobre temas correlatos ao da declaração mencionada nas postagens checadas. O programa de governo da candidata e o site do PT também foram usados para a checagem.
A declaração de Marília Arraes, que aparece nas imagens publicadas na internet, foi extraída de uma reportagem publicada na Folha de Pernambuco, no dia 21 de abril de 2017. O jornal repercutiu entre os parlamentares uma resolução do Ministério Público de Pernambuco que recomendava que o presidente da Câmara de Vereadores do Recife se abstivesse de autorizar/permitir a realização naquela casa legislativa e/ou seus anexos, de reunião/encontro ou assemelhado, em que haja a prática de liturgias e rituais próprios de cultuação religiosa.
Marília Arraes foi consultada sobre a recomendação do MPPE por, na época, ocupar o cargo de líder da oposição na Câmara. De acordo com a reportagem, a frase completa dita por ela foi: A defesa do Estado Laico é uma luta que vem sendo travada desde o primeiro mandato. Inclusive, na edição do novo regimento me posicionei contra se manter o costume de se ler passagens da Bíblia e se falar no nome de Deus. A gente tem que prezar pelo Estado Laico, principalmente pelo momento de retrocesso que a gente vive no Brasil, ressaltou.
Segundo a reportagem, em continuação, Marília Arraes disse que iria estudar uma forma de retirar a Bíblia do plenário, porém que era importante frisar que esse posicionamento nosso não é contra qualquer religião. Ele é, sim, a favor de todas elas e para que a gente tenha um Estado sem discriminação. A TV Câmara do Recife registrou os posicionamentos dos parlamentares no plenário, no dia em que foi expedida a recomendação do MPPE, mas lá não consta a frase de Marília Arraes nem qualquer manifestação da petista.
A frase foi dita por Marília Arraes no contexto da recomendação número 002/2017, publicada pelo Ministério Público de Pernambuco no Diário Oficial do dia 20 de abril de 2017. Na época, a 27ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital Promoção e Defesa do Patrimônio Público fez a recomendação considerando um procedimento preparatório para apurar o pretenso uso das dependências da Câmara Municipal do Recife para a realização de evento religioso.
O MPPE deu 20 dias para que a Câmara dos Vereadores, na figura do presidente, informasse à Promotoria de Justiça sobre as providências adotadas em face da recomendação. O tema foi alvo de matérias na imprensa local, na Folha de Pernambuco, Diário de Pernambuco e no Blog do Jamildo, do Jornal do Commercio. O tema também motivou manifestações dos parlamentares em reuniões ordinárias de abril de 2017.
O regimento da Câmara dos Vereadores do Recife diz que a Bíblia Sagrada deverá ficar, durante todo o tempo da reunião, aberta sobre a mesa, à disposição de quem dela pretender fazer uso e também diz que achando-se presente na Casa, pelo menos, a quinta parte do número total de Vereadores, desprezada a fração, o Presidente declarará aberta a reunião, proferindo as seguintes palavras: Sob a proteção de Deus e em nome do povo recifense, iniciamos nossos trabalhos.
Por e-mail, o Ministério Público afirmou que a recomendação foi feita em caráter preventivo e que o MPPE não tomou conhecimento de que a Câmara de Vereadores do Recife tenha descumprido a recomendação.
Os panfletos não possuem assinatura. A candidatura de Marília Arraes apresentou uma representação à Justiça Eleitoral para impedir a circulação desses panfletos e informou que eles estariam sendo entregues em frente a uma igreja no dia 22 de novembro. A defesa da candidata alegou que a campanha do adversário João Campos (PSB) foi responsável pela confecção e patrocínio da entrega do material, pois os adesivos colados no carro utilizado na distribuição e o material elogioso do candidato entregue com a publicidade combatida apresentam design típico de sua campanha impresso em alta qualidade.
Na decisão, a juíza da 7ª Zona Eleitoral de Recife, Virgínia Gondim Dantas, deferiu liminar em favor da candidata petista proibindo a distribuição do material e acolheu o argumento da coligação que sustentava se tratar de propaganda irregular, ao dizer que a distribuição dos materiais impressos foi levada a efeito de forma irregular, por não constar em nenhum deles a identificação do responsável pela confecção, assim como quem o contratou e a tiragem. Essas informações são obrigatórias em materiais de propaganda de candidaturas, segundo resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A magistrada também apontou na liminar que a propaganda não poderia ser divulgada porque, além da característica [de campanha] negativa, apresenta contornos de fake news, uma vez que induz o eleitor que professa a fé cristã a ter sentimentos de ódio e ojeriza pela candidata, porquanto imputa fatos notadamente inverídicos e ensejadores do repúdio da população, segundo um trecho da decisão.
A coligação liderada por João Campos se manifestou ao ser citada na representação da candidatura adversária e negou qualquer relação com os materiais. O grupo disse tratar-se de propaganda apócrifa, sem qualquer informação acerca da coligação ou do responsável pela confecção, e que não há prova de autoria ou de conhecimento do fato por parte da campanha de Campos.
Em uma série de postagens no Instagram no dia 23 de novembro, João Campos também negou relação com os materiais e disse que jamais autorizaria qualquer tipo de ataque de baixo nível. Ele afirmou ainda que foi o primeiro a pedir ao Ministério Público a apuração de denúncias sobre materiais apócrifos vistos no Recife. De minha parte, nunca irão surgir ataques pessoais, baixarias, acusações ou notícias falsas.
Procurado pelo Comprova, a assessoria de Campos não retornou a mensagem até a publicação desta verificação.
Além da representação com pedido de liminar para proibir a circulação dos panfletos, a campanha de Marília Arraes também moveu uma Ação de Investigação da Justiça Eleitoral (Aije) contra Campos e sua candidata a vice Isabella de Roldão (PDT) por suposta prática de abuso de poder econômico na distribuição dos materiais. Esta ação ainda não havia sido analisada pela Justiça eleitoral até as 13h de 26 de novembro de 2020.
As informações de que Marília Arraes teria tentado proibir a leitura da bíblia na Câmara de Vereadores foram publicadas em uma montagem com a foto da candidata à prefeita, acima da imagem de uma bíblia com sinal de proibição e uma frase entre aspas atribuída à Marília, dizendo que ela teria se posicionado contra a leitura da Bíblia na edição do novo regimento.
Este mesmo panfleto que circulou em versão impressa em Recife aparece publicado por usuários no Facebook em um grupo de apoio à candidata a prefeita de Recife, Delegada Patrícia (Podemos), que ficou em quarto lugar no primeiro turno e que recebeu apoio do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Um usuário publicou no mesmo grupo outra versão do panfleto com informações semelhantes, de que Marília Arraes tirou a bíblia da Câmara do Recife, de que o PT persegue cristãos em todo o Brasil, entre outras acusações.
A postagem do primeiro cartaz também foi replicada em um grupo chamado Bolsonaro Pernambuco. A fotografia desta montagem em formato impresso foi compartilhada ainda pela página Assembleianos de VALOR no Facebook. Neste caso, a imagem foi publicada junto com uma frase questionando se um grande número de cristãos votarão nela [Marília Arraes]?. A postagem também copia um texto do jornal Folha de Pernambuco sobre o apoio do pastor Cleiton Collins (Progressistas), que é deputado estadual e tem influência no meio evangélico, à candidatura de João Campos (PSB).
Procurada pelo Comprova, a página que compartilhou a foto do panfleto respondeu que o conteúdo estaria publicado no jornal Folha de Pernambuco. A página foi questionada se possuía alguma comprovação de que um pedido de retirada da Bíblia haveria partido de Marília Arraes, mas, até a publicação desta checagem, não enviou novas mensagens.
A página Assembleianos de VALOR tem 881 mil curtidas e publica a maior parte do conteúdo sobre religião. No entanto, no último mês há postagens favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro e a candidatos apoiados pelo mesmo grupo religioso em capitais do país, como Bruno Covas, em São Paulo (SP).
Em sua terceira fase, o Projeto Comprova verifica conteúdos que viralizam nas redes sociais ligados às eleições municipais, às políticas públicas do governo federal e à pandemia.
Esta verificação é inédita para o Comprova, pois iniciou-se com panfletos distribuídos fisicamente é o primeiro caso de desinformação checado pela equipe que não começou nas redes sociais. Ao descontextualizar afirmações de Marília e acusar indevidamente uma candidata ao segundo turno, os conteúdos colocam o processo democrático em risco. Somados, os posts tinham, até 26 de novembro, mais de 500 compartilhamentos.
O Comprova já averiguou outros conteúdos relacionados às eleições deste ano, como o de um vídeo que retira de contexto uma frase de Ana Arraes sobre agressão do neto João Campos, uma postagem que acusou, também erroneamente, o candidato paulistano Guilherme Boulos de cobrar aluguel de moradores sem-teto, e o que enganava ao afirmar que votos recebidos por vereadora no Tocantins teriam diminuído durante a apuração. O processo eleitoral também esteve presente nas checagens da equipe, que produziu investigações desmentindo que o software usado nas urnas brasileiras seria o mesmo dos Estados Unidos e que o ataque de hackers no sistema do TSE violaria a segurança da eleição (produzido em parceria com a agência Aos Fatos).
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos; que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano; ou que é retirado de seu contexto original e usado em outro, de modo que seu significado sofra alterações.
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