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Passionalismo e ideologia levam médicos a receitar tratamento precoce, diz AMB

Passionalismo e ideologia levam médicos a receitar tratamento precoce, diz AMB

O novo presidente da Associação Médica Brasileira, César Eduardo Fernandes, critica inação de conselhos de medicina e diz que furar fila da vacinação é vergonhoso

Publicado em 26 de janeiro de 2021 às 08:58- Atualizado Data inválida

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Médico temporário
Médico temporário. (Pixabay)

O ginecologista e obstetra César Eduardo Fernandes, 70, novo presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), critica o fato de pessoas que não estão na linha de frente da pandemia sejam vacinados contra a Covid antes de profissionais da saúde que lidam diariamente com pacientes infectados.

"A minha faculdade [Faculdade de Medicina do ABC] está vacinando as pessoas. Eu poderia ir lá e me vacinar. Mas eu não acho correto. Eu não estou na linha de frente", diz ele, professor titular de ginecologia.

Segundo Fernandes, é uma vergonha que prefeitos estejam sendo vacinados, sob a justificativa de que estão dando exemplo para a população. "Essa carteirada que estamos vendo aqui no Brasil nos envergonha como população."

Na liderança da segunda maior associação médica das Américas, fundada em 1951, ele diz que o passionalismo e questões ideológicas estão guiando hoje os médicos que prescrevem tratamento preventivo da Covid-19, comprovadamente ineficaz.

Para Fernandes, os conselhos médicos deveriam ter posições contrárias mais claras sobre isso, pautando-se pela ciência. “Isso não confundiria a população, daria mais força ao conhecimento científico. As razões pelas quais elas não têm essa atitude, não sei, sinceramente”, diz ele.

Nesta semana, a AMB criou uma força-tarefa para capacitar médicos a atuarem em situações de caos da Covid-19, como a que ocorreu em Manaus. Para ele, a crise na capital do Amazonas não será um caso isolado.

LEIA A ENTREVISTA:

A AMB se posicionou contrária ao tratamento precoce da Covid pela falta de evidência. Mas há uma inação dos conselhos de medicina em relação aos médicos que seguem prescrevendo o kit Covid. Por que o descompasso?

  • CÉSAR EDUARDO FERNANDES - A AMB é uma associação, ninguém está obrigado ser nosso associado. Os conselhos são autarquias federais, existem por força de lei, são eles que normatizam, autorizam a profissão dos médicos, fiscalizam as atividades e são os únicos que têm como prerrogativa punir quem comete infrações de conduta ou éticas. Os conselhos não existem para defender os médicos, mas defender a população.

E por que então que isso não está acontecendo hoje?

  • Pois é...Eu não sei por quais razões o conselho ainda não tomou uma posição clara a respeito, por exemplo, do tratamento precoce da Covid. As evidências [de que não funciona] são muito claras.

Nós nos posicionamos contra não por razões ideológicas, políticas ou partidárias, mas porque nos fundamentamos no conhecimento científico vigente, nas melhores evidências. Penso que todas as outras entidades médicas deveriam se portar do mesmo modo. Isso não confundiria a população, daria mais força para o conhecimento científico. As razões pelas quais elas não têm essa atitude eu não sei, sinceramente.

O que leva tantos médicos a negar a ciência? Falta de conhecimento? Questões ideológicas?

  • Ignorância eu entendo que não seja. Há muita informação disponível e de fontes confiáveis, tem literatura médica que você acessa a qualquer momento. Todas elas convergem para uma posição contrária ao tratamento precoce para a Covid.

Os médicos deveriam saber que esses medicamentos não funcionam, não impedem que o indivíduo evolua para as formas mais graves da Covid.

Acho que há duas hipóteses que explicam esses comportamentos: a primeira é o passionalismo. Eles acreditam, ficam cegos. Tudo o que é passional tira o indivíduo da racionalidade. A segunda hipótese é pior ainda, que ele se mova por questões ideológicas. Nenhuma das duas deveria ditar a conduta de um médico.

O colapso de Manaus é prenúncio do que pode acontecer em outras regiões? O que pode ser feito para evitar mais tragédias?

  • Eu não sei se as pessoas estão esgotadas ou sem crença, mas parece que elas ignoram que o vírus tem alta transmissibilidade. Com isso, não são rigorosas como foram em alguns meses no início da pandemia, quando mantinham o distanciamento social e havia menos aglomerações. Essa exaustão de leitos hospitalares que a gente viu em Manaus não será um episódio isolado. Isso vai acontecer em outros locais.

Havia uma grande esperança na vacina, mas ainda vai demorar para a imunização em massa. Corre o risco de terminarmos 2021 sem conseguir isso?

  • Com aprovação das duas vacinas pela Anvisa, foi como tivéssemos ganho a Copa do Mundo, aquele sentimento de euforia e entusiasmo. Com o passar dos dias, caímos na realidade. O número de vacinas que nós temos é pífio.

Mesmo com essa liberação de um lote de 2 milhões da Índia, isso é um pingo no oceano. Tudo leva a crer que sem essa maior arma que nós temos, aliás, a única, provavelmente caminharemos ao longo de 2021 por inteiro sem conseguir imunizar a população.

Além da escassez, há falta de uma coordenação nacional da imunização. O que o sr. pensa desses inúmeros casos de pessoas furando a fila?

  • Sim, a coisa deveria estar muito melhor organizada, sistematizada. Precisaria haver uma conscientização, uma campanha para que isso fosse um ato de cidadania das pessoas.

Vou dar um exemplo de natureza pessoal. Eu sou um indivíduo perto da faixa de risco pela idade que eu tenho. Sou um professor universitário. A minha faculdade está vacinando as pessoas. Eu poderia ir lá me vacinar. Mas eu não acho correto. Eu não estou na linha de frente. Estou afastado. Essa condição, essa análise de cidadania, todos nós deveríamos fazer.

É uma vergonha esses exemplos que a gente está vendo pelo país de prefeitos se vacinarem dizendo que estão dando exemplo para a população, quando não há vacina para as pessoas.

Então que tome uma vacina de placebo, tira a fotografia, faz o filminho, mas não toma a vacina. Essa carteirada que estamos vendo aqui no Brasil nos envergonha como população.

Dentro da nossa categoria de profissionais de saúde, temos que ter consciência de que agora tem que ter prioridade dentro das prioridades. As pessoas que estão trabalhando nas UTIs, nas emergências, nas unidades básicas de saúde, essas são as primeiras que deveriam ser vacinadas. Elas estão na linha de frente com mais possibilidade de se contaminar.

Não estou falando só de médico não, mas de todos os profissionais da saúde. Por que eu médico, professor titular, vou me colocar na frente de uma pessoa? É um péssimo exemplo.

Muitos atendimentos e tratamentos de outras doenças deixaram de ser feitos em 2020. É possível que isso se estenda ainda por 2021?

  • Acredito que sim. Com os hospitais ainda abarrotados de Covid, usando todas as reservas de leito de UTI, você não pode fazer procedimentos cirúrgicos, oncológicos mais graves porque, provavelmente os pacientes vão necessitar também de terapia intensiva no pós-operatório e não haverá leitos disponíveis.

Esses casos serão postergados ao longo de 2021, isso vai acontecer. Com isso, haverá o agravamento de doenças que poderiam ter prognóstico de cura ou de melhora de qualidade de vida se fossem tratadas a tempo.

Por outro lado, a gente nota o medo das pacientes de ir aos ambulatórios. Pacientes que sempre foram zelosos com a rotina ginecológica estão atrasando os seus exames. Há muitos agravos que a pandemia de Covid vai trazer com a falta de tratamento das doenças cardiovasculares, do diabetes.

Além de piorar a condição de saúde, aumentar o risco, isso vai custar mais para o sistema de saúde, que já vinha mal antes da Covid, subfinanciado, mal gerido, com desvios.

Em 2021, isso vai continuar, com contingenciamento das verbas de saúde. Isso não pode acontecer em um momento trágico como esse. Em 2022, quando formos diminuir esse represamento de demandas não atendidas, abrir as comportas, vamos encontrar um sistema de saúde muito debilitado. Eu temo por isso.

Durante a pandemia, assistimos a muitas manifestações de apoio aos profissionais da saúde. O sr. acredita que o SUS sairá mais fortalecido dessa crise?

  • Todos se conscientizaram da importância do SUS, de que é uma conquista da população brasileira. O SUS permitiu acesso aos serviços de saúde. Nas décadas de 1980, 1970, 1960, as pessoas eram excluídas da atenção médica.

Temos que defender o SUS, mas temos que lutar pela melhor qualidade da assistência e resolutividade. E isso passa por melhor gestão, financiamento e uma carreira de médico de Estado, como tem no Ministério Público, na magistratura.

As pessoas criticam que o médico só quer ficar em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, que não quer para o sertão, para a barranca do rio. Mas como ele pode ir em caráter precário para receber um salário de dois, três anos, como foi no Mais Médicos e no fim do contrato ele ser desligado?

A AMB lançou na semana passada uma força-tarefa para ajudar municípios onde houve saturação do sistema. Como isso deve funcionar?

  • A ideia foi inspirada no movimento de médicos que viajaram ao Haiti para uma ação humanitária após o terremoto de 2010. Vamos montar uma força-tarefa para capacitar profissionais a atuarem em situações de caos da Covid-19, em cidades pressionadas pelo grande volume de casos.

Mais de 280 médicos já se candidataram e vão passar por triagem e capacitação para serem enviados a locais como Manaus. Esse treinamento vai envolver a atenção de emergência, cuidados respiratórios. Não há mais médicos intensivistas e de emergências, estão todos alocados em seus locais de trabalho. Precisamos abrir frentes e formar pessoas.​

PERFIL - CÉSAR EDUARDO FERNANDES

César Eduardo Fernandes, 70, é presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), é professor titular de ginecologia a Faculdade de Medicina do ABC. Formado em medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, onde também fez a sua residência em obstetrícia e ginecologia. o mestrado e o doutorado. Entre os cargos ocupados está o de presidente da Federação Brasileiras de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

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