Tentativas de proibir abordagens sobre identidade de gênero nas escolas acumulam derrotas em série no Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro decisões recentes consolidaram o entendimento de que é inconstitucional o veto ao tema na educação.
Os posicionamentos da Corte enfraquecem uma pauta do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que emergiu no cenário político ao atacar o tema e uma suposta "sexualização precoce" presente nas escolas.
Trata-se ainda do principal front de batalha de políticos e lideranças evangélicas, que gozam de influência nos rumos do governo.
Na sexta-feira (10), Bolsonaro nomeou o pastor presbiteriano Milton Ribeiro para o cargo de ministro da Educação.
Especialistas afirmam que as teses consolidadas pelo Supremo também inviabilizam as propostas relacionadas ao Movimento Escola Sem Partido.
Criado para combater uma suposta doutrinação de esquerda nos colégios, esse movimento ganhou fôlego ao abraçar a chamada "ideologia de gênero".
Iniciativas legislativas, a partir de 2014, impulsionaram a agenda. O próprio termo "ideologia de gênero" nunca foi usado por educadores. Ele se consolidou em documentos religiosos e entre os que atacam a abordagem.
Grupos conservadores veem nessa discussão um suposto risco de destruição da família tradicional. Esse movimento ocorre no Brasil e em outros países em consonância com agendas religiosas como a oposição ao aborto e ao casamento homossexual.
Segundo educadores, a abordagem educacional sobre gênero pode colaborar com o combate a gravidez na adolescência, violência contra mulher, machismo e homofobia. Ao vetá-la, legislações impedem que professores sejam preparados para atuar com essas questões.
O STF refutou quatro iniciativas municipais que proibiam a abordagem de gênero nas escolas.
A última decisão, de 26 de junho, considerou inconstitucional artigo do Plano Municipal de Educação de Cascavel (PR), de 2015, que vedava a "adoc?a?o de poli?ticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de ge?nero, o termo 'ge?nero' ou 'orientac?a?o sexual'".
"A proibição genérica de determinado conteúdo, supostamente doutrinador ou proselitista, desvaloriza o professor, gera perseguições no ambiente escolar, compromete o pluralismo de ideias, esfria o debate democrático e prestigia perspectivas hegemônicas por vezes sectárias", diz o voto do ministro Luiz Fux, relator da matéria.
A decisão foi por unanimidade, assim como ocorreu nas outras ações, referentes a legislações de Novo Gama (GO), Foz do Iguaçu (PR) e Ipatinga (MG).
Na última semana de maio, Gilmar Mendes pontuou que a abordagem de gênero e sexualidade é obrigação de secretarias de Educação, escolas e professores.
"O dever estatal de promoção de políticas de igualdade e não discriminação impõe a adoção de um amplo conjunto de medidas, inclusive educativas, orientativas e preventivas, como a discussão e conscientização sobre as diferentes concepções de gênero e sexualidade", diz o voto.
Denise Carreira, da ONG Ação Educativa, afirma que a grande mensagem do STF é que as escolas devem abordar gênero.
"Precisamos garantir uma educação que contribua para a formação cidadã das crianças e dos adolescentes e para isso é fundamental que haja liberdade para abordar conteúdos de ciência", diz.
A Ação Educativa integra grupo de organizações e redes de sociedade civil que tem atuado contra a censura nas escolas, inclusive no STF.? A Corte ainda analisa outras 11 ações que questionam legislações similares.
Para o professor Salomão Ximenes, da Universidade Federal do ABC, os fundamentos explorados nas decisões se aplicam às outras ações porque reforçam a liberdade de expressão no exercício profissional dos docentes, o pluralismo de concepções pedagógicas e a vedação de censura prévia.
"A interpretação é que o STF coloca como positivo as controvérsias no debate na sala de aula, ao contrário do Escola Sem Partido, que quer levar ao litígio conflitos que são naturais do ambiente escolar", diz ele, que integra o grupo que atuou junto ao STF.
De 2014 a 2019, o Movimento Professores Contra o Escola Sem Partido identificou 245 projetos de lei pelo Brasil com conteúdos similares que buscam limitar o que o professor pode falar na sala de aula.
"A questão agora é reabilitar o entendimento de que crianças e adolescentes são sujeitos, que são pessoas completas e têm direito a ter acesso à educação sobre gênero", diz a professora Renata Aquino, membro do movimento.
Aquino e Carreira afirmam que o modelo de escolas cívico-militares, patrocinado pelo MEC, é a atual fronteira do movimento que preconiza uma escola guiada pela disciplina e sem debates contemporâneos.
O MEC lançou projeto para converter, neste ano ano, 54 escolas para o modelo - a pandemia atrasou os planos.
A pasta também anunciou, em novembro 2019, protocolo para, segundo o governo, fomentar a cultura de paz nas escolas, mas que previa o envio a escolas de documento que remonta a princípios do Escola Sem Partido.
Questionado, o MEC não informou sobre o andamento desse projeto. A pasta também não comentou as decisões do Supremo.
Procurado, o advogado Miguel? Nagib, do Escola Sem Partido, não quis falar com a Folha.
A reportagem procurou Braulio Matos, também do movimento, que não respondeu. Em entrevista à Folha em 2018, Matos disse que a "ideologia do gênero" significaria uma erotização precoce, sem consentimento da família e promovida pelo Estado.
Ele também reforçou que há distinção entre liberdade de expressão do professor fora da sala da aula ou no exercício profissional, tese já refutada pelo STF.
Autora de projeto do Escola Sem Partido em trâmite na Câmara, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) não respondeu aos pedidos de entrevista. Outro projeto com teor similar ficou em trâmite na Casa na legislatura passada, mas foi arquivado no fim de 2018.
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