Enfrentando um cenário de falta de pessoal, distância entre as cidades que chegam a centenas de quilômetros e ausência de um aparato estatal de apoio ao Judiciário, magistrados de pequenas comarcas veem obstáculos para a implantação do modelo de juiz das garantias no Brasil.
A proposta, sancionada em dezembro pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), prevê que a condução dos processos criminais será dividida entre dois magistrados - um será responsável pela fase da investigação, enquanto o outro se encarregará do julgamento.
Na avaliação dos magistrados, a proposta esbarra em deficiências na estrutura do Poder Judiciário que dificilmente seriam resolvidas no prazo de 30 dias concedido para implantação do novo modelo.
A nova lei prevê que o juiz das garantias entre em vigor no próximo dia 23. Antes disso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) irá divulgar até esta quarta-feira (15) uma proposta de implementação.
Em Estados como a Bahia, por exemplo, o número de comarcas que tem apenas um juiz chega a 63% do total. A Justiça estadual baiana possui 534 magistrados espalhados por 203 comarcas. Destas, 129 possuem apenas um juiz.
"Não estamos preparados estruturalmente para que seja instituída tal inovação neste momento", afirma a juíza Elbia Araújo, presidente da Associação dos Magistrados da Bahia.
O Tribunal de Justiça da Bahia montou uma comissão para analisar modelos para implantação do juiz das garantias. Serão analisadas propostas como a criação de um sistema de rodízio entre os juízes e a criação de núcleos regionais com juízes que cuidariam exclusivamente da investigação.
Na comarca de Terra Nova, município de 12 mil habitantes que fica a 75 km de Salvador, o juiz Marcelo Lagrota é o único magistrado da cidade e ainda atende aos processos da cidade vizinha de Teodoro Sampaio.
Ele afirma que, ao contrário das grandes cidades, onde muitas vezes diferentes varas funcionam em um mesmo prédio, juízes de pequenas comarcas costumam enfrentar viagens desgastantes para chegar às cidades vizinhas.
Ele afirma que a nova configuração, com divisão de tarefas entre mais de um juiz, pode resultar em morosidade nos processos e críticas da população das pequenas cidades.
"A presença física do juiz simboliza o Poder Judiciário nas cidades. O fato de ele não poder atuar nos julgamentos pode gerar um distanciamento, uma sensação de perda de importância daquele magistrado perante a comunidade", afirma.
No Rio Grande do Norte, onde a Justiça estadual possui 146 comarcas, sendo 39 delas com apenas um juiz, um problema a ser enfrentado é a ausência de aparato estatal em cidades de pequeno porte
Juiz titular da comarca de Florânia (229 km de Natal), Pedro Paulo Falcão Júnior afirma que a cidade de 9.000 habitantes possui apenas três policiais militares. Não há delegado de polícia nem defensor público para atuar em audiências de custódia.
"Com a efetivação do juiz de garantias sem a devida estrutura, os processos penais ficarão paralisados. A consequência será a impunidade, seja pela prescrição ou pelo próprio impedimento de atuar no feito", afirma.
Ele ainda afirma que a divisão de tarefas por resultar em um nó na gestão do andamento dos processos, já que nem sempre a lista de juízes substitutos poderá suprir a demanda. "Diversas situações peculiares da magistratura ocorrem no dia a dia, como impedimentos, suspeições, férias, licenças médicas e até a vacância da vara".
Defensor do modelo de juiz das garantias, o juiz da 12ª Vara Criminal de Salvador, Roberto Schmitt, afirma que os obstáculos podem ser contornados desde que haja uma reestruturação interna do Judiciário.
Ele destaca a necessidade da redução do número de comarcas no país para gerar uma maior eficiência. "Em outros países, onde há o juiz das garantais, não há essa proliferação de comarcas que existe no Brasil", afirma.
A extinção de comarcas, contudo, costuma enfrentar forte resistência no meio político. Para agradar suas bases eleitorais, deputados costumam trabalhar pela abertura de novas comarcas e criticam quando há fechamento.
A Bahia, por exemplo, reduziu o número de comarcas da entrância inicial de 221 para 131 nos últimos anos. Ainda assim, o cenário é dificuldade frente ao déficit de pessoal, sobretudo de juízes.
Das 131 comarcas de primeira entrância da Bahia, 83 estão sem juiz titular e 13 não foram efetivamente instaladas. Um exemplo é Jacaraci, município do sudoeste baiano a 719 km de Salvador.
Com cerca de 3.000 processos em andamento nas varas crime e cível, a comarca é atendida um juiz substituto que também atua a outras cidades da região. Em média, um magistrado fica na cidade cinco dias por mês.
Segundo o Tribunal de Justiça da Bahia, faltam 149 juízes na estrutura do Judiciário baiano. Para tentar mitigar parte do problema, foi aberto um concurso com 50 vagas para juiz substituto.
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