Servidores do MEC (Ministério da Educação) estão apreensivos com a indicação de membros de uma espécie de "tribunal ideológico" que o governo pretende criar para avaliar quais questões poderão ser usadas no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).
A Folha de S.Paulo revelou que a gestão Jair Bolsonaro tem pronta uma portaria que estabelece uma instância permanente de análise dos itens das avaliações da educação básica. O documento prevê veto a "questões subjetivas" e atenção a "valores morais".
O perfil dos escolhidos para compor essa comissão causa preocupação entre servidores, que falaram à reportagem sob condição de anonimato. Ainda não há informações sobre quem fará parte do grupo.
A reportagem teve acesso à minuta do texto do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), órgão ligado ao MEC e responsável pelo Enem e outras avaliações.
A publicação oficial da portaria está prevista para os próximos dias -o tema é tratado com urgência por decisão do ministro da Educação, Milton Ribeiro.
A minuta da portaria aponta que a nova comissão será formada pelo presidente do Inep (cargo hoje ocupado por Danilo Dupas Ribeiro), o diretor de Avaliação da Educação Básica e outros dois integrantes externos por cada área avaliada pela prova.
A parte objetiva do Enem, sobre a qual a comissão atuará, é composta por quatro áreas: linguagens, matemática, ciências humanas e ciências da natureza. Questionados, Inep e MEC não responderam.
Principal porta de entrada para o ensino superior, o Enem é referência para aquilo que é ensinado nas escolas de ensino médio do país.
A iniciativa já foi rechaçada internamente pelos técnicos do Inep. Nota técnica obtida pela reportagem ressalta que já há um longo processo de elaboração das questões, com ao menos sete etapas de revisão.
"Essa avaliação envolve, além das revisões técnico-pedagógicas, o escrutínio em um painel de especialistas, composto por professores com larga experiência em cada um dos componentes curriculares, tanto no âmbito acadêmico como no escolar, que compõem as áreas do conhecimento", diz o documento, que ainda ressalta haver a validação estatística dos itens.
Em carta pública, a associação de servidores do instituto já expôs preocupação com nomeações ideológicas e intervenções políticas em processos técnicos.
Funcionários veem esvaziamento técnico do instituto. Ribeiro retirou do Inep, por exemplo, a liderança nas discussões de reformulação do Ideb, principal indicador da qualidade da educação básica.
O temor com a composição da nova comissão é reforçada internamente pelo perfil dos membros escolhidos recentemente pelo ministro para fazer parte do conselho consultivo do Inep.
No dia 11 de junho, o ministro nomeou integrantes sem notório saber em avaliação, foco de atuação do instituto, entre os quais um congressista bolsonarista e um acadêmico que é pastor evangélico.
O deputado estadual de São Paulo Tenente Coimbra (PSL), militar da reserva e um dos novos membros do conselho, publicou nas redes sociais que atuará em defesa das escolas cívico-militares. Tema caro ao governo, não tem relação com as ações do instituto.
Outo integrante é Roque do Nascimento Albuquerque. Pastor, como o ministro, é reitor da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) e tem estudos na área de linguagem.
Ainda fazem parte do conselho um professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), que tem contratos com o Inep, e um diretor do Mackenzie, instituição na qual o ministro atuou.
O plano de criar uma comissão de revisão ideológica surge após o ministro afirmar, em audiência na Câmara no dia 9 de junho, que havia desistido de conferir pessoalmente as questões do Enem.
Aos congressistas, ele não citou, no entanto, que haveria uma nova instância de análise das questões.
O embate ideológico é a principal marca da gestão Bolsonaro na área da educação até agora. O governo tem aversão a questões que abordem, por exemplo, qualquer discussão de gênero.
Em 2019, o Inep criou uma comissão que censurou questões. Elogiada por Bolsonaro, a ditadura militar (1964-1985), por exemplo, não foi mais abordada no exame. Já a nova comissão será permanente.
Bolsonaro catapultou sua carreira política em uma cruzada contra abordagens do que ele e outros detratores chamam de "ideologia de gênero", expressão não usada por educadores. Em 2013, disse ser homofóbico "com muito orgulho".
O presidente faz críticas ao Enem desde que era deputado. Em 2015, atacou uma citação no Enem à filósofa francesa Simone de Beauvoir, o que seria, para ele, uma tentativa de doutrinação.
Ainda na eleição, ele prometeu avaliar pessoalmente as questões do Enem. Mas isso não ocorreu até agora.
A própria escolha de um pastor para o cargo de ministro teve o objetivo de reforçar o posicionamento ideológico do governo.
Em entrevista recentemente, Ribeiro disse que pretendia analisar pessoalmente as questões da próxima edição do exame para, segundo ele, evitar abordagens que entende ser ideológicas. Ele citou como exemplo uma suposta inadequação de perguntas de exames anteriores.
Uma delas, de 2018, tratava de dialeto usado por travestis (mas não exigia conhecimento específico sobre isso) e outra, da última edição, sobre a diferença salarial entre homens e mulheres, a partir do caso dos jogadores Neymar e Marta. Ambas já haviam sido criticadas pelo presidente.
Há um inquérito contra o ministro no STF (Supremo Tribunal Federal) por eventual crime de homofobia.
Em setembro, Ribeiro disse em entrevista que a homossexualidade não seria normal e a atribuiu a "famílias desajustadas". Na Câmara, pediu desculpas.
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