Mesmo antes da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ ) sobre o julgamento que analisa se as operadoras de saúde podem ou não ser obrigadas a arcar com procedimentos não incluídos no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS ), planos de saúde têm interrompido terapias que já vinham sendo oferecidas a crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA ) por não constar na lista da agência reguladora.
Iniciado em setembro de 2021 e suspenso em fevereiro por pedido de vista (mais tempo para estudar), o julgamento será retomado nesta quarta-feira (8). A decisão tem sido muito aguardada porque poderá servir como base para futuros julgamentos. Até agora, embora muitas decisões sejam favoráveis aos usuários, há uma insegurança judicial, com interpretações diferentes dos processos, dependendo de onde é julgado.
A briga no STJ envolve os beneficiários de planos e as operadoras de saúde. Os usuários, associações de pacientes e de defesa do consumidor querem um rol exemplificativo, ou seja, que a lista ANS funcione só como referência mínima e que outras demandas possam ser atendidas sob solicitação médica.
Já os planos de saúde defendem um modelo taxativo, sem a possibilidade da inclusão de terapias ou exames não listados pela agência regulatória, modelo que funciona em outros países, como Reino Unido e Canadá.
Até o momento, o placar no STJ está empatado em 1 voto a 1. O relator Luiz Felipe Salomão votou a favor do rol taxativo, enquanto Nancy Andrighi, do rol exemplificativo.
Na apresentação do seu voto, em setembro passado, o ministro Salomão sustentou que o modelo taxativo é necessário para proteger os beneficiários dos planos de aumentos excessivos e assegurar a avaliação de novas tecnologias na área de saúde. Mas ele admite exceções, como terapias que têm aval expresso do CFM (Conselho Federal de Medicina).
A despeito do impasse, nos últimos meses planos de saúde de ao menos quatro estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Norte) têm suspendido terapias já concedidas a crianças com autismo, algumas garantidas por meio de liminares.
Entre as terapias está a ABA (do inglês, "applied behavior analysis"), que se baseia em análise de comportamento e de intervenções para estimular linguagem, independência diária e diminuir comportamentos de risco, como agressões.
No mês passado, um grupo de 80 mães de crianças com autismo, de Salvador (BA), fez protesto após o plano suspender esse tratamento. A justificativa da operadora, segundo as mães, é que o rol da ANS não prevê cobertura assistencial desse tipo de terapia.
Em abril, 300 pais de crianças e adolescentes com autismo também protestaram em Natal (RN) após o plano suspender terapias realizadas pelos ATs (assistentes terapêuticos), que atuam no ambiente domiciliar e escolar, ajudando a criança com autismo na organização de atividades diárias, por exemplo. O argumento da operadora para a suspensão também foi a falta de previsão no rol da ANS.
A secretária Luzia, que tem um filho autista de seis anos, conta que sem as terapias e o profissional que assistia a criança na sala de aula, o menino deixou de ir à escola. "Ele está mais agressivo." Em geral, essas terapias demandam de 30 a 40 horas semanais e o conjunto delas pode custar em torno de R$ 18 mil mensais, segundo ações que tramitam nos tribunais.
Segundo a ativista pelos direitos dos autistas Andrea Werner, mãe de Theo, 13, diagnosticado com TEA, desde que o ministro Salomão manifestou o voto dele a favor do rol exemplificativo, em setembro de 2021, vários planos suspenderam o tratamento de crianças com deficiência.
"O argumento é sempre o mesmo: como não está no rol da ANS não vamos mais atender. Gerou um efeito cascata grande mesmo sem ter chegado a uma decisão final. Também há vários juízes citando o voto do Salomão para derrubar liminares já concedidas."
Segundo a advogada Vanessa Ziotti, diretora jurídica do Instituto Lagarta Vira Pupa e mãe de trigêmeos autistas, advogados de planos de saúde têm feito um "copia e cola" do voto do Salomão para pleitear a derrubada de liminares que garantiam a assistência integral a pessoas com deficiências, inclusive serviços de home care.
Mesmo em casos em que a liminar favorável ao paciente foi mantida, há descumprimentos reiterados por parte de operadoras de saúde, afirma Ziotti. "A gente observa uma ausência de constrangimento por parte das operadoras em descumprir liminar. Elas não têm medo, mesmo com a imposição de multas diárias, de R$ 300, R$ 500."
A advogada conta que uma outra prática das operadoras tem sido descredenciar terapeutas e clínicas que só atendiam autistas e, ao mesmo tempo, criar centros de atendimento próprios que concentram crianças com várias deficiências, como a síndrome de Down.
A Folha apurou com dois auditores médicos que a verticalização dos serviços é uma forma que as operadoras têm encontrado para ter controle dos custos e dos desfechos dessas terapias. Segundo eles, que pedem anonimato, há casos sendo investigados de médicos que prescreveram terapias voltadas a autistas que só existiam em determinadas clínicas, a preços muito altos e sem evidência de eficácia.
Mas, apesar dessas polêmicas, Vera Valente, diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), entende que, no caso do autismo, a situação já esteja pacificada desde julho de 2021, quando a ANS autorizou o direito a um número ilimitado de sessões com fonoaudiólogos, psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais.
"Mas até isso precisa estar um pouco mais detalhado porque há situações de crianças que fazem 80 horas semanais de coisas. Caramba! Essas crianças dormem acompanhadas [por terapeutas], comem acompanhadas? Há aspectos que são muito mais educacionais do que de tratamento. Plano de saúde é tratamento", diz.
Segundo ela, os questionamentos que existem em relação às terapias para o autismo são aqueles que fogem ao que está estabelecido pela ANS. "São coisas muito alternativas, que precisam de uma chancela das sociedades médicas. Não dá para fazer coisas sem comprovação científica com o dinheiro dos outros [que têm planos de saúde]."
A retomada do julgamento no STJ nesta quarta deve vir acompanhada de novos protestos em Brasília.
Na opinião de Vera, o rol sempre teve caráter taxativo, contempla todas as doenças listadas na CID (Classificação Internacional de Doenças) e sua atualização é baseada em evidências científicas, feita por um colegiado e ampla participação da sociedade. "Ele é avaliado permanentemente e de forma rápida. Se tiver elementos suficientes para mostrar que o produto é diferenciado em relação ao que já existe, é aprovado."
Segundo ela, 50% do que é submetido para a incorporação, a ANS já descarta de pronto porque não tem o mínimo de critérios necessários para a avaliação.
Valente lembra que em nenhum país do mundo há cobertura ilimitada de todos os tratamentos ou procedimentos e que todos passam por avaliações.
Ela conta que há uma enorme pressão para a incorporação de medicamentos muito caros, como os destinados a doenças raras, que, às vezes, conseguem registro com estudos clínicos incompletos e que vão precisar ser validados no mundo real.
"A gente entende a situação das mães, elas olham para o seu caso, para a sua dor, mas a decisão da sociedade tem que levar em conta todo mundo."
Em nota, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) disse que formular o preço de um produto sem limite de cobertura, que compreenda todo e qualquer procedimento, medicamento e tratamento existente, pode tornar inviável o acesso a um plano de saúde e pôr a continuidade da saúde suplementar no Brasil em xeque.
"O conceito de haver uma lista exemplificativa é absolutamente contraditório. O atual rol de procedimentos possui mais de 3.000 itens, que passaram pela Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS), amplamente recomendada pela OMS [Organização Mundial de Saúde] e reconhecida pela comunidade internacional. Processo esse imprescindível nos sistemas de saúde."
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