As polícias do Rio de Janeiro fazem quatro vezes mais operações em territórios controlados pelo tráfico de drogas do que pelas milícias, segundo levantamento elaborado pelo GENI (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos) da UFF (Universidade Federal Fluminense), a pedido do jornal Folha de S.Paulo.
O grupo cruzou informações de operações realizadas entre junho de 2020 e fevereiro de 2021, repassadas pelas polícias ao MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro), com o mapa dos grupos armados da Região Metropolitana.
Divulgado no ano passado, o mapa mostra que as milícias expandiram seu poder e estão presentes em um quarto dos bairros da capital, que, somados, correspondem a 57,5% da cidade. O estudo foi produzido em conjunto com o datalab Fogo Cruzado, o Núcleo de Estudos da Violência da USP, a plataforma digital Pista News e o Disque-Denúncia.
Em junho de 2020, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin concedeu liminar determinando que apenas operações policiais excepcionais poderiam ocorrer no Rio de Janeiro durante a pandemia da Covid-19. A restrição foi confirmada em agosto no plenário, pela maioria dos ministros.
Apesar da decisão do Supremo, mais de 400 ações foram realizadas no Estado até o fim de fevereiro, segundo dados da Polícia Militar e da Polícia Civil apresentados ao Ministério Público, responsável pelo controle externo da atividade policial.
Desde a determinação de Fachin, de acordo com o levantamento do GENI, 44% das operações na Região Metropolitana foram realizadas em territórios do Comando Vermelho, principal facção do tráfico de drogas no estado.
Em seguida, com 33,4%, aparecem as localidades em disputa. As ações contra o Terceiro Comando Puro, facção que em algumas regiões se aliou aos grupos paramilitares, representam 11% do total. Já os territórios das milícias foram alvo de 10,7% das operações.
Para o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do grupo que realizou o estudo a pedido da reportagem, os resultados são preocupantes porque indicam "um favorecimento das milícias em detrimento dos outros grupos". "O uso estatal da força é seletivo no Rio de Janeiro", diz.
Hirata afirma que historicamente as operações não foram de fato eficientes no enfrentamento à criminalidade, mas que ainda assim causam prejuízos aos grupos armados. Por isso, se um grupo é alvo preferencial da polícia, em detrimento de outros, pode haver uma reorganização do domínio sobre as comunidades.
"Em muitos casos, o enfraquecimento de um grupo armado abre espaço para a invasão de outro. Ou seja, as operações não são instrumentos efetivos para o controle do crime, mas acabam sendo importantes para definir o grupo hegemônico", diz ele.
O levantamento também sugere que as operações em territórios do tráfico de drogas são mais letais do que nas comunidades controladas pelas milícias.
Das operações contra o Comando Vermelho, 32,2% resultaram em mortes e 28,9% em feridos. No caso das milícias, as mesmas porcentagens são de 22,4% e 15,5%, respectivamente.
Os cálculos foram realizados a partir da base de dados do GENI, alimentada com fontes secundárias (imprensa e redes sociais). Os números se referem à Região Metropolitana, de janeiro de 2020 a fevereiro de 2021.
A razão entre o número de mortes e de operações, cálculo que indica a letalidade média de cada ação, também foi maior no caso do tráfico --0,6, em comparação a 0,4 nos territórios das milícias.
Questionada sobre a maior quantidade de operações em territórios do tráfico, a Polícia Civil afirmou que o Comando Vermelho atua na maior parte das comunidades do Rio de Janeiro. Também lembrou que em outubro do ano passado a instituição criou uma força-tarefa contra as milícias.
A corporação diz que desde então cerca de 80 operações contra as milícias foram realizadas, com mais de 600 presos. Nos dados enviados ao MP-RJ, porém, o GENI-UFF identificou apenas 40 operações contra esses grupos de junho a fevereiro.
Diante da discrepância nos números, a Folha de S.Paulo questionou se a Polícia Civil deixou de informar ao Ministério Público a realização de alguma operação, como determina o STF. Também pediu para que a polícia apontasse na lista encaminhada ao MP-RJ as 80 operações que diz ter realizado contra as milícias.
Procurada ao menos cinco vezes, a corporação não ofereceu resposta para os questionamentos.
Já a Polícia Militar respondeu, também em nota, que combate indistintamente todas as facções. "Em relação ao combate às milícias, essas ações exigem um grau de investigação maior e, em função dessa particularidade, as unidades da Polícia Militar atuam muitas vezes em apoio à força-tarefa da Polícia Civil, criada com esta finalidade", afirma o texto.
Desde a decisão de Fachin, o 34° BPM (Magé) foi a instituição que mais realizou operações (48).
Em dezembro de 2020, o jornal O Globo mostrou que a Polícia Civil e o Ministério Público identificaram que policiais do batalhão recebiam informações do chefe da milícia local para realizar operações e enfraquecer o tráfico na região.
As milícias são geralmente formadas por quadros das polícias Militar e Civil e dos Bombeiros. Na capital, se concentram principalmente na zona oeste e, no estado do Rio, na Baixada Fluminense. São fruto dos grupos de extermínio que tiveram seu auge na década de 1970.
Em seu início, nos anos 2000, os grupos paramilitares obtinham lucros em cima da extorsão dos moradores de comunidades, por meio da venda de segurança, de gás e do acesso à TV por assinatura. Nos últimos anos, estenderam seus tentáculos e hoje atuam também em outras frentes, como na construção e na venda de imóveis irregulares e até na cobrança de consultas em hospitais públicos.
Após a restrição do STF, as operações e as mortes por intervenção policial apresentaram importante declínio de junho a setembro. A partir de outubro, porém, um mês após o início do governo interino de Cláudio Castro (PSC), a letalidade policial voltou a aumentar.
Em novembro, Fachin ordenou que o estado indicasse os motivos para a realização das operações em caráter de excepcionalidade, com cópia dos ofícios encaminhados ao Ministério Público, assim como a descrição dos cuidados tomados.
O procurador-geral do estado, Bruno Dubeux, respondeu que não houve resistência por parte do governo ao cumprimento da ordem do Supremo. Ele sustentou que todas as operações da Polícia Civil foram realizadas em "caráter excepcional", sem o uso de helicópteros e respeitando o horário de entrada e saída das escolas.
Em agosto, antes do julgamento no plenário, o governo havia argumentado pela derrubada da liminar de Fachin, afirmando que a restrição da atuação das polícias fortalece as estratégias de expansão das organizações criminosas e coloca a vida dos moradores em risco.
Em entrevista ao jornal O Globo, o delegado Allan Turnowski, secretário de Polícia Civil, sugeriu que a violência no Rio de Janeiro se enquadraria numa situação de exceção e que, portanto, não haveria desrespeito à decisão do Supremo com a continuidade das operações.
"Na verdade, a violência no Rio não é um caso de exceção? Quando o STF afirma que a polícia só pode trabalhar em situações de exceção, estamos totalmente respaldados. Isso não impede as ações da polícia. Já estamos alinhados com a decisão", afirmou.
Já o MP-RJ respondeu ao STF que o entendimento é que a decisão restringiu, mas não impediu a realização das operações. "O juízo de valor acerca da necessidade emergencial de levar a efeito uma operação policial em comunidade (...) continua sendo das polícias."
O MP-RJ também afirmou que uma leitura contrária resultaria na ineficácia das forças policiais, "o que é impensável na realidade do Estado do Rio de Janeiro, em que a criminalidade organizada domina quase a totalidade dessas comunidades".
Ainda que na prática as operações não tenham sido inteiramente suspensas, o número de mortes por intervenção policial no Rio de Janeiro em 2020 foi 31% menor do que em 2019, segundo dados do ISP (Instituto de Segurança Pública).
A diminuição das operações e dos índices da violência no estado foi concomitante, o que levou pesquisadores e moradores de comunidades a questionarem a eficácia de uma política de segurança pública voltada ao enfrentamento.
Foi o caso, por exemplo, dos crimes violentos letais intencionais (homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte e latrocínio), que apresentaram queda de 12% em 2020, em comparação a 2019. No mesmo período, o total de roubos também caiu 37%.
Nos dias 16 e 19 de abril haverá uma audiência pública agendada por Fachin para coletar informações que devem subsidiar o estado na elaboração de um plano de redução da letalidade policial.
A audiência também servirá para auxiliar o Conselho Nacional do Ministério Público a definir procedimentos para a fiscalização da atuação policial e dos órgãos do Ministério Público estadual.
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