O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fez um pronunciamento em cadeia nacional na noite desta terça-feira (23), mesmo dia em que o Brasil cruzou pela primeira vez a marca das 3 mil mortes registradas em 24 horas, para defender sua gestão no combate à pandemia do novo coronavírus, iniciada há pouco mais de um ano.
Com o aumento desenfreado no número de mortes no país, onde já morreram quase 300 mil pessoas (100 mil apenas de meados de janeiro até agora), Bolsonaro tem sido pressionado a modular seu discurso sobre a crise sanitária no país, cuja gravidade, além de uma montanha de mortos, afeta as perspectivas econômicas, sociais, políticas e de relações exteriores do país, cada vez mais isolado.
No pronunciamento, de quatro minutos, o presidente disse que seu governo é "incansável" no combate ao vírus - que por 12 meses ele minimizou - e se solidarizou com as famílias e amigos das quase 300 mil vítimas, após ter debochado do temor e do luto da população em diferentes ocasiões.
A reportagem checou como 11 afirmações de Bolsonaro no discurso desta terça se comparam com suas declarações passadas, suas ações e a realidade da pandemia.
O presidente Bolsonaro pessoalmente minimizou a pandemia em diferentes ocasiões. Em março de 2020, afirmou que "está superdimensionado o poder destruidor desse vírus", "não é isso tudo que a grande mídia propaga" e que "não podemos entrar numa neurose, como se fosse o fim do mundo." Ademais, ele próprio provocou aglomerações e recusou usar máscaras. Além disso, seu governo apostou no uso de remédios considerados ineficazes contra a doença, como a hidroxicloroquina.
Na parte econômica, o governo federal propôs um auxílio emergencial mais tímido do que o que foi aplicado. Em março, a gestão Bolsonaro havia proposto uma ajuda de R$ 200, depois subiu para R$ 300, e o Congresso aumentou para R$ 600.
Neste ano, com a piora da pandemia e nova rodada de fechamentos, o governo resistiu de novo a conceder o auxílio, mas depois se dispôs a pagar uma ajuda média de R$ 250, que pode variar de R$ 150 a R$ 375 a depender da composição familiar. Bolsonaro ainda vetou outras ajudas econômicos, como um aporte de R$ 4 bilhões ao setor de transportes de passageiros, que ficou próximo da falência com a queda de passageiros.
De acordo com dados da plataforma World in Data, ligada à Universidade Oxford, o Brasil é o sexto país que mais aplicou vacinas proporcionalmente à população, atrás de Israel, Emirados Árabes Unidos, Chile, Reino Unido e Estados Unidos.
Já em número total de vacinados, o Brasil fica em quarto lugar, atrás de Estados Unidos, China e Reino Unido.
Dados levantados por veículos de imprensa junto às secretarias estaduais de saúde apontam que 12,8 milhões de pessoas já receberam ao menos uma dose da vacina.
O próprio Ministério da Saúde também apresenta em seu site um número diferente do informado pelo presidente. De acordo com a pasta, 11,4 milhões de pessoas receberam ao menos uma dose do imunizante, e 30 milhões de vacinas foram distribuídas pelo país.
O governo Bolsonaro realmente fechou acordo e liberou recurso para a compra e produção do imunizante no país.
Especialistas afirmam, no entanto, que o erro foi ter apostado em uma única vacina, e recusado doses de outras fabricantes, como a Pfizer, que já teriam entregue uma parcela dos imunizantes ao país. Nesta terça (23), o Ministério da Saúde reduziu pela quinta vez a expectativa de entrega de vacinas, depois que a Fiocruz, que produz o imunizante da AstraZeneca no país, baixou a previsão de 30 para 18 milhões de doses.
É verdade que o país entrou no consórcio liderado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mas, das 42 milhões de doses acordadas, o país recebeu apenas 1 milhão. Outras 1,9 milhão de doses devem desembarcar no país até o final do mês de março, e mais 9,1 milhões de doses devem chegar ao país até maio. Esse cronograma, segundo o Ministério da Saúde, está sujeito a alterações.
De fato, em dezembro, o presidente assinou uma Medida Provisória que liberava R$ 20 bilhões para a compra de vacinas em geral. Em janeiro, o governo fechou acordo com o Instituto Butantan para a produção da Coronavac, desenvolvida pela fabricante chinesa Sinovac, mas isso só depois de rejeitar e criticar o imunizante diversas vezes. Em outubro do ano passado, por exemplo, depois que o então ministro da Saúde Eduardo Pazuello afirmou que o governo compraria a vacina, Bolsonaro afirmou: "Mandei cancelar, o presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade".
Em rede social, falou em traição e disse que não compraria a "vacina chinesa de João Doria." Bolsonaro chegou a comemorar em novembro quando os testes foram suspensos. "Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar todos os paulistanos a tomá-la", escreveu o presidente como resposta. "O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha."
A afirmação não é realista. Apesar de haver fabricação de duas vacinas contra a Covid no Brasil, a Coronavac, pelo Instituto Butantan, e a Covishield, pela Fiocruz, tem ocorrido atrasos constantes no cronograma de entrega de vacinas.
Nesta terça, por exemplo, a Fiocruz informou que entregará ao Ministério da Saúde de 11 a 12 milhões de doses a menos do que estava previsto do imunizante em abril. Pela Fiocruz, espera-se a entrega, até o meio do ano, cerca de 100 milhões de doses. Até agosto, o Butantan deve entregar o mesmo número de doses.
Considerando os brasileiros acima de 15 anos (169.277.800), porém, seriam necessárias mais de 330 milhões de doses. A compra de outras vacinas, porém, como a da Pfizer, devem garantir a vacinação de todo o país, até algum momento de 2021.
A afirmação é falsa. Bolsonaro, por diversas vezes, menosprezou a vacina Coronavac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac e produzida no Brasil pelo Instituto Butantan, e chegou a falar que o país não compraria a vacina. "Da China nós não comparemos, é decisão minha. Eu não acredito que ela [vacina] transmita segurança suficiente para a população pela sua origem", declarou o presidente.
"Acredito que teremos a vacina de outros países, até mesmo a nossa, que vai transmitir confiança para a população. A da China, lamentavelmente, já existe um descrédito muito grande por parte da população, até porque, como muitos dizem, esse vírus teria nascido lá", disse.
Bolsonaro também chegou a desautorizar a compra das vacinas do Butantan, após acordo firmado pelo então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Em outro momento, quando o estudo da vacina foi pausado para análise de uma morte ocorrida na pesquisa, o presidente comemorou o fato em suas redes sociais.
A afirmação é verdadeira, mas há ressalvas. Bolsonaro só se encontrou com o CEO mundial da Pfizer, Albert Bourla, recentemente, no início de março, momento em que o país enfrentava colapsos e números altíssimos de Covid pelo total descontrole da pandemia. Antes, o governo ignorou e rejeitou propostas da farmacêutica para fornecimento de milhões de doses, com possibilidade de aplicação já a partir de dezembro de 2020.
Até fevereiro de 2021, estavam previstas 3 milhões de doses. Antes do encontro com Bourla, Bolsonaro repetidas vezes falava sobre efeitos colaterais relacionados à vacina, mais especificamente ao contrato com a farmacêutica, o qual a isenta de responsabilização em caso de possíveis efeitos colaterais da vacina.
"Se tomar e virar um jacaré é problema seu. Se virar um super-homem, se nascer barba em mulher ou homem falar fino, ela [Pfizer] não tem nada com isso", afirmou Bolsonaro, em 17 de dezembro. Àquela altura, o país já via a expansão da Covid. O governo brasileiro rejeitou no ano passado proposta da farmacêutica Pfizer que previa 70 milhões de doses de vacinas até dezembro deste ano. Do total, 3 milhões estavam previstos até fevereiro, o equivalente a cerca de 20% das doses já distribuídas no país até agora.
Pesquisadores afirmam que a lenta velocidade na vacinação e a possibilidade do surgimento de novas variantes, mais transmissíveis e agressivas, devem fazer com que a imunidade de rebanho não seja atingida ainda neste ano.
Por isso, médicos e pesquisadores dizem que na volta à "vida normal", mesmo quando a vacinação tiver avançado, as pessoas deverão continuar seguindo regras de distanciamento social e uso de máscara, pois a proteção ideal estará longe de ser atingida. Medidas que têm sido atacadas por Bolsonaro desde o início da pandemia.
O presidente, inclusive, continua tentando impedir governadores de adotar ações para controlar a disseminação do vírus. Na última sexta (19), Bolsonaro moveu ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o decreto dos governos do Distrito Federal, Bahia e Rio Grande do Sul com restrições à circulação de pessoas durante o momento mais crítico da pandemia. O ministro Marco Aurélio Mello negou o pedido liminar.
A frase dita no pronunciamento destoa do discurso que vem sendo adotado pelo presidente nos últimos meses. Bolsonaro já usou as palavras histeria e fantasia para classificar a reação à pandemia. No começo deste mês, também afirmou que a população precisa enfrentar o problema.
"Nós temos que enfrentar os nossos problemas, chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os problemas. Respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades, mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?", disse em viagem a São Simão (GO), em 4 de março. Na quinta (18), Bolsonaro disse que "parece que só se morre de covid" no Brasil.
Desde o início da pandemia o presidente tem sido contrário e desestimulado as medidas defendidas para o combate à disseminação do vírus. Bolsonaro incentivou aglomerações, espalhou informações falsas sobre a Covid-19, fez campanha de desobediência a medidas de proteção, como uso de máscara , e defendeu e distribui remédios sem eficácia comprovada contra a doença.
No último domingo (21), no pior momento da pandemia, o presidente comemorou seu aniversário com centenas de apoiadores aglomerados em frente ao Palácio da Alvorada. Bolsonaro, inclusive, retirou a máscara para discursar.
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