Nas últimas duas semanas, políticos e analistas apontaram os partidos de direita e o Centrão como os grandes vitoriosos das eleições municipais deste ano.
O PSD de Gilberto Kassab, por exemplo, viu o número de prefeituras sob seu comando aumentar 36% entre 2020 e 2024.
O PL do ex-presidente Jair Bolsonaro cresceu 50%. E até o PT, que ficou longe das cifras de 2012, o seu auge nas eleições municipais, também cresceu 36%.
Mas nenhum desses partidos obteve uma "vitória" tão significativa quanto a reeleição.
Neste ano, a taxa de reeleição foi de 80,5% segundo levantamento da empresa de inteligência de dados Nexus com base em informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) checadas pela BBC News Brasil.
Os dados consolidados do segundo turno ainda não foram divulgados, mas, dos 17 candidatos que tentaram a reeleição na segunda etapa da disputa, 14 conseguiram se reeleger.
É o maior percentual de prefeitos e prefeitas reeleitos desde 2008, quando os dados começaram a ser compilados, segundo dados do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getúlio Vargas (Cepesp-FGV).
A título de comparação, nas eleições municipais anteriores, em 2020, a taxa de reeleição líquida foi de 64,69%.
A reeleição líquida é medida pela quantidade de candidatos aptos à reeleição e que de fato disputaram o pleito e o venceram, descartando-se os que podiam se candidatar, mas não disputaram as eleições.
Mas o que explica tamanho crescimento em apenas quatro anos?
Cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil dizem que ainda é cedo para cravar as razões, mas acreditam que o volume de emendas parlamentares destinadas a municípios por deputados federais pode ter "desequilibrado" a disputa a favor dos atuais prefeitos.
Outra hipótese está relacionada à taxa de abstenção registrada no primeiro turno, que foi de 21,7% neste ano, e é considerada alta pelo TSE. Um terceiro fator apontado seria o alinhamento entre os prefeitos candidatos e os governos estaduais.
Apesar de os especialistas indicarem ainda ser preciso analisar a fundo os dados para identificar que fatores efetivamente influenciaram na taxa de reeleição, eles avaliam que isso deve ter desdobramentos e influenciar a formação do Congresso Nacional em 2026.
A reeleição para cargos do Poder Executivo foi implementada no Brasil em 1997 por meio de uma Emenda Constitucional.
Desde então, prefeitos, governadores e presidentes da República passaram a ter o direito de se candidatar a uma reeleição.
Desde então, pesquisadores passaram a se debruçar sobre os efeitos da reeleição no sistema político brasileiro e sobre que fatores influenciam na reeleição ou não dos candidatos.
O aumento na taxa de reeleição registrado neste ano acompanha uma tendência iniciada em 2016, quando 47,97% dos prefeitos que podiam se reeleger e disputaram as eleições venceram as suas disputas. Esse percentual subiu para 64,69% em 2020.
Essa tendência, no entanto, contraria, em parte, um estudo produzido pelos cientistas políticos Thomas Brambor e Ricardo Ceneviva, de 2012.
O artigo, intitulado "Reeleição e continuísmo nos municípios brasileiros", apontou que, diferentemente do que o senso comum indicava, estar no comando das prefeituras não representaria uma vantagem do candidato à reeleição na comparação com seus adversários.
"Nossos resultados indicam que os prefeitos que tentaram a reeleição no exercício do cargo sofreram uma considerável corrosão em seu desempenho eleitoral", dizia um trecho do estudo.
O artigo analisou dados das eleições municipais de 2000 a 2008 e concluiu que, na média, os prefeitos que tentavam a reeleição tinham uma desvantagem de pelo menos quatro pontos percentuais em suas margens de votos em comparação com suas votações no pleito anterior.
Entre os fatores que poderiam contribuir para isso, estariam efeitos negativos de políticas de cortes de gastos, mau desempenho da economia do país e o impacto de "puxadores de votos" ligados aos governos estaduais e federal.
O cenário político brasileiro desde 2012 sofreu mudanças significativas, e, agora, um dos autores do estudo que apontava a desvantagem dos prefeitos na reeleição, Ricardo Ceneviva, afirma que há novos elementos que possam explicar essa mudança de tendência.
O principal deles seria o impacto das emendas parlamentares impositivas na disputa municipal.
Dados de um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontam que o valor pago pelo governo em emendas saiu de R$ 3,43 bilhões em 2015 para R$ 35,3 bilhões em 2023.
Um levantamento feito pelo jornal Folha de S. Paulo com base no primeiro turno apontou que quase todos os 116 prefeitos que mais receberam recursos de emendas parlamentares durante seus quatro anos de mandato foram reeleitos.
De acordo com a análise do jornal, a taxa de reeleição para esse grupo foi de 98% — apenas dois prefeitos não conseguiram se manter no cargo.
Em agosto deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, determinou a suspensão do pagamento de parte destas emendas até que fossem tomadas medidas para dar mais transparência e controle sobre os seus autores e suas destinações.
A falta de critérios transparentes para a destinação dessas verbas fez com que essas emendas ficassem conhecidas como "orçamento secreto".
"É preciso analisar os dados com calma, mas um dos fatores que podem ter influenciado é o volume de emendas parlamentares destinadas aos municípios", diz Ceneviva à BBC News Brasil.
" Se houver uma correlação entre o volume de recursos e a reeleição, isso pode ser uma explicação."
As emendas impositivas ao orçamento são emendas apresentadas por parlamentares que alteram o orçamento e destinam parte dos recursos federais para Estados, municípios ou projetos de interesse do parlamentar.
Nos últimos anos, mudanças na Constituição Federal levaram a um aumento no volume de recursos pagos em emendas. Parte disso se deu por conta de uma alteração que tornou obrigatório o pagamento desses recursos.
Dessa forma, parlamentares com interesses políticos em uma determinada região ou município passaram a direcionar mais recursos em emendas para seus redutos, o que, em tese, poderia estar dando uma vantagem aos prefeitos em busca da reeleição.
Para Luciana Santana, professora de Ciência Política da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), dados preliminares indicam que teria havido uma relação direta entre a reeleição de prefeitos e a quantidade de recursos destinados a estes municípios por meio de emendas parlamentares.
"Hoje, o principal fator explicativo [do aumento na taxa de reeleição] é essa relação entre as emendas que foram destinadas por parlamentares a prefeitos aliados sem a intermediação que antes havia do governo federal", afirma Santana.
A professora explica o que seria, ao seu ver, a lógica eleitoral por trás das emendas parlamentares.
A partir do momento em que o governo federal passou a ter menos poder de decisão sobre as emendas, elas passaram a ser "negociadas" diretamente entre parlamentares e prefeitos.
A tese investigada por cientistas políticos no Brasil é de que esses recursos passaram a ser usados como forma de articular apoio político entre parlamentares e prefeitos.
A consequência, segundo Santana, é que, à medida em que prefeituras passaram a contar com mais recursos por meio das emendas, os gestores municipais em busca de reeleição passaram a sair em vantagem.
"Muitas vezes, essas emendas são destinadas a promover obras, construir, enfim, obras e executar programas dentro dos municípios. E isso acaba fortalecendo aqueles líderes que estão nesses espaços no momento da eleição, porque eles têm o que apresentar para o eleitorado, né?", diz Santana.
Ceneviva diz que ainda é preciso se debruçar com mais atenção sobre os dados das eleições deste ano, mas afirma ser possível que as emendas parlamentares tenham, sim, algum efeito na taxa de reeleição.
"Se os municípios que receberam mais emendas estão tendo reeleição, isso pode, sim, ser parte da explicação", afirma o professor.
George Avelino Filho, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), explica que, no Brasil, quase 70% dos municípios têm até 20 mil habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Por conta disso, a capacidade de investimento das prefeituras é muito limitada, uma vez que a maior parte das suas receitas vêm de repasses constitucionais dos Estados e da União.
Dessa forma, os recursos obtidos por meio de emendas são considerados vitais para investimentos e obras que, de outra forma, dificilmente seriam realizados.
"O gestor municipal quer melhorar sua cidade, mas não tem muito como fazer a não ser com recursos extraordinários. E é aí que entram as emendas", afirma Avelino Filho.
"Ainda que a gente possa dizer que os valores são pequenos, temos que levar em conta que, para algumas cidades, R$ 200 mil pode não ser tão pouco dinheiro assim."
Todos os cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que ainda é cedo para dizer categoricamente que as emendas foram o único ou o principal fator por trás do aumento na taxa de reeleição.
Alguns deles, por exemplo, pontuam outros possíveis "suspeitos" por trás desse crescimento.
Ceneviva diz, por exemplo, que um dos fatores pode ser polarização política.
Segundo ele, antes de 2018, o nível de polarização no Brasil seria menor e isso levava a coligações sem consistência ideológica.
Muitas vezes, partidos como o PT se coligaram com legendas à direita como o PL ou o Republicanos.
Desde o aumento da polarização, segundo Ceneviva, o que se viu, na média, foram coligações menos amplas e que representam melhor os principais polos políticos brasileiros.
À medida em que nos pleitos de 2016 e 2020 os principais vencedores já haviam sido candidatos eleitos com base em discursos polarizados, a tendência vivida neste ano seria uma repetição desse cenário.
"Se este for o caso, considerando a onda conservadora que tem varrido o Brasil desde 2018, a polarização e esse avanço conservador podem explicar, em parte, essa taxa de reeleição", afirmou o professor.
Avelino Filho, por sua vez, aponta para outro fator: o alinhamento entre prefeitos que disputam a reeleição e os governos estaduais.
"Este é um dos fatores clássicos em ciência política. O alinhamento do candidato ao governador é um ponto importantem porque esse alinhamento pode gerar apoio de diversas formas e isso pode favorecer quem disputa a reeleição a depender da popularidade do governador local", explica.
O professor diz ainda que outro fator que pode ter ajudado a aumentar a taxa de reeleição: a abstenção no primeiro e no segundo turnos.
"Taxas de abstenção altas favorecem quem está no poder, porque esses candidatos têm mais recursos e condições de mobilizar suas equipes para ir às urnas", disse o professor.
Segundo o TSE, a taxa de abstenção no segundo turno das eleições deste ano foi de 29,26%, a segunda maior desde 2000. A maior foi registrada em 2020, com 29,5%. Naquele ano, o Brasil vivia os efeitos da pandemia de Covid-19.
E NO PRIMEIRO TURNO?
Diante de uma taxa de reeleição tão elevada, uma das perguntas que parece inevitável é: os eleitores estariam mais satisfeitos do que estavam no passado?
Para os cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil, a resposta tem nuances.
"Em certa medida, é possível dizer que o eleitor está satisfeito", afirma Santana.
"O eleitor não avalia se a solução foi dada pelo presidente ou pelo governador. Na eleição municipal, ele avalia se a rua está segura, se a praça está bem cuidada, se ele tem vaga no posto de saúde, se não espera tanto por uma cirurgia. O que importa é se ele está sendo atendido de alguma maneira."
Para Avelino Filho, a reeleição pode ter ligação com a satisfação dos eleitores, mas também pode estar relacionada com o cenário da competição eleitoral.
"A não ser que a gente acredite que, neste ano, tivemos uma safra de prefeitos espetacularmente melhor do que as anteriores, é possível que haja mais elementos que expliquem isso", diz o professor.
"Ou o eleitor está vendo os prefeitos como agentes que melhorem as suas vidas ou a oposição é tão ruim e o eleitor pensa: 'É melhor ficar com esse prefeito a eleger a oposição'."
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o aumento na taxa de reeleição pode ter efeitos diversos sobre o ambiente político e que isso não pode ser considerado ruim ou bom de forma categórica.
"Democracia sempre supõe alternância de poder por meio de eleições competitivas. Mas quanto de alternância é bom é algo que varia", afirma Avelino Filho.
"Reeleger pode ter um lado bom e um ruim. O ruim é criar clãs que podem não ser mais responsivos ao eleitor. Mas a reeleição pode implicar, também, em acúmulo de experiência."
Santana tem uma avaliação semelhante: "A reeleição é importante para a condução de políticas públicas. Acho que quatro anos de mandato é insuficiente para que tenhamos a implementação de medidas importantes para o município. Acho que a reeleição ajuda a garantir que essas políticas cheguem à população".
Santana e Avelino Filho, no entanto, concordam, que, se esta taxa de reeleição tiver relação direta com as emendas parlamentares, isso gera pontos de preocupação.
"O problema é que essas emendas não estão sujeitas a mecanismos fortes de transparência", diz Santana.
"Existe um menor controle sobre esses recursos, e não sabemos, por exemplo, se todos os municípios são atendidos da mesma forma ou se os recursos atendem a interesses políticos."
Santana também aponta que a lógica eleitoral na distribuição dos recursos de emendas pode levar a gastos que não sejam, necessariamente, do interesse público.
"É difícil saber, por exemplo, se os gastos feitos com recursos das emendas são de fato necessários ou supérfluos", diz a professora.
Para Ceneviva, as emendas de relator e de comissão, que ficaram conhecidas por integrarem o chamado "orçamento secreto", podem desequilibrar o jogo político municipal e parlamentar.
"Essas emendas, que são pouco transparentes, não obedecem aos critérios de transparência e acho que podem ser muito prejudiciais e desequilibrar o jogo político em favor dos atuais grupos políticos no poder", diz o professor.
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