Procuradores da República viram "uma devassa" na decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, de determinar ao Coaf que lhe desse acesso a todos os relatórios de inteligência financeira produzidos nos últimos três anos. Os relatórios têm dados sigilosos de cerca de 600 mil pessoas, conforme revelado nesta quinta-feira (14).
Para o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Fábio George Cruz da Nóbrega, a decisão de Toffoli é heterodoxa e incomum e certamente preocupa os órgãos de controle, como o Coaf - rebatizado de Unidade de Inteligência Financeira (UIF) - e a Receita Federal.
Além de determinar o envio dos relatórios de inteligência financeira (RIFs) da UIF, Toffoli requereu também as representações fiscais para fins penais (RFFPs) elaboradas pela Receita nos últimos três anos.
A UIF informou a Toffoli que não conseguiria lhe enviar cópias dos relatórios, mas deu ao ministro uma espécie de senha de acesso ao seu sistema eletrônico. Nesta quinta (14), a assessoria de Toffoli, em nota, disse que ele não acessou o sistema, apesar de ter obtido o acesso.
"O presidente Dias Toffoli não comenta processo que tramita sob segredo de Justiça. Vale esclarecer que o STF não recebeu [cópias] nem acessou os relatórios de inteligência financeira conforme divulgado pela imprensa", diz o texto.
A determinação de Toffoli é do último dia 25 de outubro e foi no âmbito de um processo (um recurso extraordinário) no qual, em julho, o ministro já havia suspendido todas as investigações do país que usaram dados de órgãos de controle sem autorização judicial prévia.
Naquela ocasião, Toffoli concedeu uma liminar (decisão provisória) atendendo a um pedido de Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo PSL-RJ, filho do presidente Jair Bolsonaro e que era alvo de uma apuração do Ministério Público do Rio. O plenário do Supremo analisará o tema na próxima quarta (20).
"Normalmente, em um recurso extraordinário, se julga a matéria com base na documentação que se encontra [no processo]. É inusitado, estranho, heterodoxo, incomum que se determine, no curso de um recurso extraordinário, a obtenção de uma quantidade enorme de documentos. Dá a entender que é uma devassa que envolve documentos sigilosos da Receita e do Coaf", disse Nóbrega, da ANPR.
As informações sigilosas ficam em poder dos órgãos de controle porque eles têm atribuição, prevista em lei, para obtê-las (a partir de instituições como bancos, por exemplo), analisá-las, guardá-las ou repassá-las para o Ministério Público, que faz investigação criminal, quando houver alguma suspeita.
Para especialistas, não haveria uma justificativa legal para que essas informações fossem remetidas ao Supremo, ainda que a corte preserve o sigilo delas. A subprocuradora-geral Luiza Frischeisen, coordenadora da câmara criminal do Ministério Público Federal, afirmou que Toffoli abriu tanto o objeto do processo que acabou realizando uma verdadeira devassa.
Luiza também destaca que o processo é um recurso extraordinário (sobre um caso concreto de uma investigação) no qual se discutia o compartilhamento de dados da Receita Federal com Ministério Público. Foi reconhecida a repercussão geral - o que significa que o desfecho do julgamento terá impacto em casos semelhantes na Justiça pelo país.
Ao incluir o Coaf no bojo do processo, para atender ao senador Flávio Bolsonaro, Toffoli já havia expandido o objeto. Na avaliação da subprocuradora-geral, para ter pedido acesso aos relatórios financeiros e fiscais relativos a casos concretos, o presidente do STF teria que ser o juiz desses casos, mas não é.
"Num processo que é definido, vai abrindo, vai abrindo, vira uma verdadeira devassa. O que o ministro está fazendo é uma devassa em dados fiscais e de inteligência financeira", disse.
"Bastaria ter ido ao Coaf e perguntado como é feito [o relatório de inteligência financeira]. O ministro tem que entender o procedimento, como é que ele vai analisar 20 mil casos? Não há condições de analisar isso, ele tem que avaliar a questão teórica", afirmou.
O advogado e professor de direito constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano disse que a medida de Toffoli é inconstitucional porque "extravasa a lógica da razoabilidade que deve acompanhar toda decisão judicial" e fere o direito à intimidade.
"Há um direito de sigilo das pessoas a proteger e a intervenção nesse direito deve ser a mínima possível. Cada autoridade que tem acesso àquela informação é um devassamento do sigilo", afirma Serrano.
"Quando o ministro pede toda a movimentação de 600 mil pessoas, isso é evidentemente desnecessário para a finalidade que ele deseja. O meio utilizado é desproporcional em relação ao fim. Não há relação de razoabilidade entre meio e fim, e a ausência dessa relação leva à conclusão de que há uma inconstitucionalidade na decisão."
A cientista política e professora da USP Maria Tereza Sadek estuda temas do Judiciário e o STF há mais de 15 anos e disse ter ficado surpresa com a medida de Toffoli.
"Fiquei muito assustada. Não é usual e nunca vi nada parecido com isso. Ao fazer isso neste momento, o ministro contribui para fragilizar a imagem do Supremo, o que é muito ruim para a democracia", afirmou Sadek.
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