As cinzas das queimadas da Amazônia são capazes de aumentar a taxa de derretimento das geleiras dos Andes, piorando uma situação que já traz riscos para os reservatórios de água dos países da região.
A conclusão vem de dados de satélite e observações de campo analisados por cientistas brasileiros e franceses. Publicados na revista especializada Scientific Reports, os resultados reforçam a ideia de que a queima maciça de árvores derrubadas na região amazônica produz efeitos em escala continental -- além de ter impacto planetário, graças à emissão de gases-estufa que esquentam a atmosfera.
Calcula-se que, em anos de queimadas intensas, a taxa de derretimento em locais como a geleira de Zongo, na Bolívia, aumente cerca de 5%. "Pode parecer pouco para uma geleira individual, mas o efeito somado em diversas geleiras dos Andes tende a ser considerável", diz o biólogo Newton de Magalhães Neto, do Laboratório de Geoprocessamento da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
Magalhães Neto e o físico Heitor Evangelista, também da Uerj, são os autores brasileiros do estudo, ao lado dos glaciologistas Thomas Condom, Antoine Rabatel e Patrick Ginot, da Universidade de Grenoble Alpes, na França.
A equipe compilou dados sobre queimadas obtidos pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) do ano 2000 até 2016, além de modelos sobre a circulação de massas de ar na América do Sul e informações de longo prazo sobre o clima e o fluxo de água derivada da geleira de Zongo. Também levaram em conta as medições da presença do chamado carbono negro (basicamente a cinza escura das queimadas) na estação de Chacaltaya e da geleira de Illimani, localizadas a 5 km e 55 km da geleira de Zongo, respectivamente.
Que a presença do carbono negro em cima da superfície normalmente branca de uma geleira seja capaz de facilitar o seu derretimento é uma consequência lógica de modificações no chamado albedo, ou seja, a capacidade de refletir a luz solar.
Geleiras e áreas cobertas de neve têm albedo alto, refletindo quase toda a luz. Quando aparecem áreas escuras em meio à brancura, o albedo diminui, e a radiação solar começa a ser absorvida, esquentando a área. Trata-se do mesmo princípio que faz com que seja má ideia sair de camiseta preta no sol quente: ela esquenta muito rápido. "É essa analogia que eu sempre costumo usar", afirma Magalhães Neto.
No caso da interação entre as geleiras dos Andes e da Amazônia, a situação parece ter sido particularmente dura na estação seca dos anos de 2007 e 2010, épocas em que estava ativo o fenômeno El Niño, um potencializador da secura em boa parte da América do Sul, e, ao mesmo tempo, proprietários de terras abusaram das queimadas em território amazônico.
Nessas circunstâncias, o fluxo anual de água gerado pelo derretimento da geleira aumentou 4,5%. O efeito pode variar também por conta da quantidade de poeira -- provavelmente oriunda das áreas mais secas do altiplano andino --que chega à geleira. A presença de poeira também afeta o albedo e pode favorecer o degelo.
O fenômeno preocupa porque as geleiras são a principal fonte de água dos rios andinos nos períodos secos. Sem elas, é preciso contar exclusivamente com a chuva para o abastecimento desses mananciais. "Essas geleiras já estão encolhendo por causa das mudanças climáticas, mas os efeitos do carbono negro das queimadas potencializam ainda mais esse problema", explica o pesquisador da Uerj. E, com o aumento da secura na Amazônia --fenômeno também impulsionado pelas alterações climáticas globais --, a tendência é que as queimadas saiam do controle com mais frequência.
Há ainda o fato de que o próprio Amazonas nasce nas geleiras dos Andes. Ainda não se sabe até que ponto a diminuição delas pode afetar o maior rio do mundo, já que a maior parte do fluxo do Amazonas é abastecido pelas chuvas, mas a água que vem dos Andes costuma trazer nutrientes importantes para os rios amazônicos.
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