Regras estipuladas pelo governo Jair Bolsonaro para distribuir merenda nas escolas durante a crise do coronavírus se chocam com as medidas tomadas pelas redes locais de ensino.
Com a pandemia de Covid-19, a verba da União direcionada à merenda só pode ser usada para a compra de alimentos para a distribuição às famílias, que devem buscá-los nas unidades escolares ou as escolas devem levar alimentos aos alunos.
Secretários estaduais de Educação, porém, dizem que a medida não é viável e tomaram decisões diferentes para oferecer alimentação aos alunos -muitos dependem das refeições oferecidas pelos colégios.
Além disso, os recursos federais para merenda foram transferidos, mas parte do dinheiro está parada. As redes públicas que optaram por transferência de dinheiro ou compra de cestas básicas estão impedidas de usar o recurso.
Para gestores locais, faltou coordenação do Ministério da Educação (MEC), o que pode reduzir a capacidade de se garantir alimentação com o fechamento de escolas durante o isolamento social. A interrupção das aulas teve início na segunda quinzena de março, e a imprevisibilidade do retorno reforça a preocupação com os estudantes. A suspensão das atividades atinge todo o país.
O dinheiro federal é operacionalizado pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Esse recurso varia de R$ 0,32 a R$ 1,07 por dia por aluno. O programa corresponde a uma pequena parte do gasto total das redes com merenda, que chega a ser até nove vezes maior. Ainda assim, tem grande importância para o financiamento do serviço.
Desde o início do ano, o MEC repassou R$ 1,1 bilhão do Pnae para as redes (27% do orçado). Parte do dinheiro havia sido executada pelos governos regionais antes da interrupção das aulas. Uma parcela, porém, está parada em várias localidades do Brasil.
O dinheiro está travado em ao menos nove redes estaduais. São elas as de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Bahia, Ceará, Roraima e Pará. A reportagem questionou as secretarias estaduais de Educação de todo o país. Sergipe, Santa Catarina e Rio Grande do Sul seguirão as orientações do MEC. A Paraíba afirmou que ainda vai anunciar uma ação para o serviço e distribuirá a merenda em estoque. Os demais estados não responderam.
A Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, por exemplo, optou por um modelo de transferência de R$ 55 a alunos carentes por meio de um aplicativo, tudo financiado com recursos estaduais. A ação deverá atender 732 mil estudantes.
Segundo o secretário Rossieli Soares, é inviável distribuir merenda nas escolas, tanto por causa da logística quanto para evitar aglomeração. "Não posso usar profissionais do grupo de risco nas escolas. Não temos como dar segurança a todo o processo para evitar que uma pessoa vá à escola saudável e volte doente", disse.
"A gente compra 8, 10 quilos de ervilha, vou abrir um pote e distribuir para as famílias? A própria higiene não é viável", afirmou Soares.
Vitor de Angelo, secretário do Espírito Santo e vice-presidente do Consed (órgão que representa os gestores estaduais) critica a decisão do governo. O Consed também se posicionou contra a medida, o que causou atritos entre dirigentes e o MEC.
"A saída pensada pelo governo é muito mais propaganda do que uma medida consensualizada. Ela não ajuda de fato", disse o vice-presidente do Consed, Vitor de Angelo.
No Espírito Santo, optou-se pela distribuição de cestas básicas, o que não atende regras do MEC.
"O governo alega o óbvio, que a legislação não permite [usar o Pnae para distribuir dinheiro ou só para alunos mais pobres], mas estamos em um período de medidas excepcionais", disse Angelo.
A Secretaria de Educação do Pará afirmou que "as distâncias geográficas e a existência de áreas rurais remotas exigiriam uma logística de tempo e recursos inviáveis".
O ministro Abraham Weintraub (Educação) sempre defendeu manter a distribuição da merenda nas escolas e nos últimos dias tem defendido, assim como Bolsonaro, o retorno às aulas. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação ( FNDE), órgão ligado ao MEC responsável pelas transferências, publicou no dia 9 de abril uma resolução que regula o uso do Pnae para kits.
Parte das compras deve contemplar a agricultura familiar, e as distribuições devem ocorrer nas escolas ou na casa dos alunos. A determinação se ancora em lei sancionada no dia 8 de abril. O texto final aprovado pelo Congresso retirou a previsão de transferências de recursos por meio do Bolsa Família.
Essa proibição se reflete também nas redes municipais. Questionadas, as secretarias de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte afirmaram que também não vão conseguir usar recursos do Pnae neste momento.
O secretário municipal de São Paulo, Bruno Caetano, disse que o MEC foi omisso na parte pedagógica diante da pandemia e, quando resolveu atuar com relação à merenda, fez de forma desastrada."Não prever outras formas de distribuição que não o próprio gênero em si é uma ação que desconhece a realidade das redes", disse. "Cabe ao MEC a coordenação nacional, hoje ao alcance de um clique, mas isso não ocorreu."
A rede paulistana tem investido R$ 24 milhões por mês para distribuir dinheiro por meio de um cartão a 273 mil alunos. Caetano afirmou que, com o recurso federal, o município ampliaria o número de beneficiados.
Segundo Luiz Miguel Garcia, presidente da Undime -que representa dirigentes municipais de Educação-, as regras têm causado confusão. "Ressaltamos a importância do planejamento das redes para garantir a sustentabilidade e o diálogo com a assistência social para garantir segurança alimentar dos mais carentes", disse.
O FNDE afirmou em nota que trabalha com as secretarias de Educação para manter o programa de alimentação escolar ativo mesmo com aulas suspensas. O órgão ressaltou o volume de repasses já feitos via Pnae. Porém, o FNDE não respondeu quanto do dinheiro está parado e por que não avançou nas negociações com os governos.
O MEC não previu até agora nenhum recurso novo para enfrentamento do coronavírus na educação básica. A pasta transferiu para as escolas um dinheiro já previsto, que é voltado para ações pedagógicas, mas o MEC o anunciou como reforço para compra de artigos de higiene.
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