As polícias do Rio de Janeiro registraram nos seis primeiros meses deste ano o menor número de armas de fogo apreendidas de seu histórico. Foram 3.360 unidades recolhidas de janeiro a junho, a marca mais baixa para um primeiro semestre desde 2000, quando essa estatística se iniciou.
A média dos últimos seis anos foi de 4.368 armamentos retirados das ruas no mesmo período 25% a mais. A queda atinge quase todos os tipos de arma, incluindo as mais pesadas, como os fuzis, pesadelo da população fluminense.
As munições acompanham a tendência. A quantidade de cartuchos colhidos no primeiro semestre também foi a menor desde que o dado começou a ser coletado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), ligado ao governo Wilson Witzel (PSC), em 2014.
Nesse caso, porém, a redução é ainda maior: foram 49 mil munições apreendidas, diante de uma média de 88 mil nos seis anos anteriores (diferença de 44%). Os cartuchos de alta potência, que alimentam armas como fuzis, tiveram uma queda expressiva.
Procuradas para comentar os dados, as polícias não responderam.
A queda nas apreensões coincide com o isolamento social provocado pela pandemia do novo coronavírus e inclui o mês de junho, quando o ministro Edson Fachin, do STF, publicou uma liminar que limitou as operações em favelas do RJ durante a crise sanitária.
"A pandemia pode ter impactado fortemente pelo modo como são feitas as apreensões no Brasil. A polícia normalmente recolhe as armas depois que elas estão em uso, e não antes. Ou seja, quando ocorre um crime, em abordagens ou em operações", diz Bruno Langeani, coordenador do Instituto Sou da Paz, que ajudou a compilar os dados.
Nessa lógica, como havia menos gente nas ruas, aconteceram menos crimes e portanto ocorreram menos apreensões roubos de veículos e de cargas, por exemplo, que normalmente incluem uso de armamento, caíram 36% no primeiro semestre em relação ao ano passado.
Provavelmente também havia menos policiais atuando nessas atividades, tanto por terem sido deslocados para outras funções quanto por terem se contaminado pelo vírus as polícias não responderam quantos ficaram doentes. "Como a apreensão é feita de certo modo por acaso, exige muito recurso humano", acrescenta Langeani.
A pandemia e a decisão do STF podem ajudar a explicar a baixa produção das polícias da gestão Witzel entre março e junho. Não são suficientes, porém, para esclarecer a queda expressiva que já existia em janeiro e fevereiro, tanto no recolhimento de armas quanto de munições.
"A diminuição já vinha acontecendo mesmo quando havia um número muito alto de operações. É mais um elemento que mostra que as operações não são uma boa estratégia para resolver a segurança pública", avalia Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé, que advoga pelo tema.
Silvia Ramos, pesquisadora da Universidade Cândido Mendes e coordenadora da Rede de Observatórios da Segurança, concorda que a baixa efetividade atual é reflexo de um modelo ineficiente. "O funcionamento típico do Rio é se perder todos os dias no varejo da guerra às drogas, com muita letalidade e pouca efetividade", diz.
"Um documento do próprio governo afirma que traficantes e milícias continuam articulados mesmo depois de tantos anos fazendo operações. Na gestão Witzel isso se potencializou: cada batalhão faz suas operações e não tem uma coordenação pensando que o que alimenta o crime é a venda de armas e munições, sem qualquer inibição", completa.
Também é apontada como hipótese para a queda nas apreensões uma possível redução da produtividade da Desarme, a delegacia especializada em armas, munições e explosivos do Rio, depois da troca de gestão. Em 2019 Witzel passou a chefia da unidade do delegado Fabricio Oliveira para Marcus Vinicius Amim.
É consenso entre os pesquisadores, porém, que as baixas apreensões não se devem a uma redução da circulação de armamentos. O documento citado por Silvia Ramos, enviado pela Polícia Civil ao STF para tentar reverter a restrição às operações, estima que 56.520 traficantes ou milicianos portem fuzis ou pistolas no estado hoje (apesar de não explicar o cálculo).
Dados nacionais também mostram que o registro de novas armas pela Polícia Federal e a compra de munições controladas pelo Exército explodiram neste ano, após uma série de flexibilizações nas normas pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido) grande parte dos artefatos usados pelo crime são desviados de fontes legais.
A lógica das operações e confrontos, na opinião os analistas, faz com que investigações sobre a real origem dos armamentos e cartuchos fiquem em segundo plano.
"As polícias em geral não vão atrás da origem da arma, o trabalho para ali no roubo ou registro de porte. Dificilmente um delegado vai pedir rastreamento, indagar a pessoa sobre onde ela comprou", diz Langeani. Por isso, para ele, a solução passa por equipes especializadas e interligadas com órgãos como PF e PRF.
Um exemplo bem sucedido ocorreu na última sexta (31): a Desarme, o Exército e o Ministério Público Militar apreenderam 83 armas em uma empresa de vigilância de um major da reserva da PM. Parte delas deveria ter sido destruída pelo Exército, mas foi desviada possivelmente por um tenente-coronel, segundo o RJ2, da TV Globo.
O que possibilitou a apreensão foi um rastreamento de meses. É por isso que, para Risso, são necessários mecanismos mais efetivos de marcação dos artefatos.
O RJ tem uma lei de controle de armas desde 2018, que segundo ela não está sendo efetivamente colocada em prática. No último dia 22, o ministro da Justiça, André Mendonça, também retirou a exigência da implantação de chips que evitam que a numeração possa ser raspada em uma portaria que regula a compra de semiautomáticas.
"É preciso entender o perfil e o caminho da arma apreendida: o fabricante, a numeração etc. Fiz um estudo sobre as armas periciadas em 2011 e 2012 em São Paulo e 50% tinham numeração, ou seja, é possível rastrear", diz. "Se não fecharmos os canais de desvio, estamos colocando em risco a vida dos policiais e de todos nós."
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