O Brasil possui atualmente mais de 41 mil pessoas em fila de espera para transplante de órgãos, e esse número não será reduzido se outro dado epidemiológico não melhorar: a subnotificação de morte encefálica.
São considerados para doação de órgãos pacientes com diagnóstico de morte encefálica -quando o cérebro para de funcionar de maneira irreversível, e não há mais chance de vida. Outros critérios, como compatibilidade entre receptor e doador e demais condições médicas, também são avaliados para viabilizar a doação.
O diagnóstico de morte encefálica é obrigatório, e os hospitais devem notificar as Centrais Estaduais de Transplantes quando há um paciente nessas condições. No entanto, há um consenso de que nem todos os casos de morte cerebral são notificados.
Segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), o número absoluto de notificações de potenciais doadores em 2019 (último ano com dado disponível) era de 11.400, dos quais apenas 3.768 tornaram-se efetivos. A taxa de notificação por milhão de população (PMP) era de 54,7, caindo para 18,1 quando considerados só os doadores efetivos.
A Espanha, com 46,9 doadores PMP, é o país com a maior taxa de doadores. O sistema espanhol é reconhecido no mundo todo como exemplo de sucesso.
No Brasil, a taxa de notificação PMP varia bastante entre os estados, com alguns com taxas maiores do que 100, como é o caso do Distrito Federal (106,6) e do Paraná (102,7), e outros abaixo de 40, como Minas Gerais (38) e Bahia (38,8).
As principais causas de morte encefálica são traumatismo craniano -causado por acidentes, atropelamento ou ferimentos com armas- e AVCs (acidentes vasculares cerebrais). Outras causas, como tumores cerebrais e afogamento, são menos frequentes.
Para José Eduardo Afonso Júnior, coordenador do programa de transplantes do Hospital Israelita Albert Einstein, não há razões para achar que no Paraná morrem mais pessoas por trauma craniano ou por AVCs do que na Bahia ou em Minas, estados muito populosos, o que indica subnotificação nesses estados.
Em São Paulo, estado mais populoso do país e com maior número absoluto de notificações -foram 3.060 em 2019-, apenas um terço dos pacientes com morte cerebral vira doador efetivo. Dessa forma, um aumento no número de notificações levaria a um aumento no número efetivo de doadores.
Para isso, duas coisas são necessárias: a comunicação e o diagnóstico adequado de morte encefálica.
No primeiro caso, uma relação de confiança com a equipe médica que atende a vítima e a comunicação constante com os familiares fortalecem essa condição e podem levar, de fato, à doação dos órgãos.
"Qualquer falha na comunicação ou no atendimento daquele familiar que chegou ao hospital vai colocar em risco o processo de doação. Por isso é tão importante o diagnóstico absolutamente rigoroso de morte encefálica -não há possibilidade de erro."
O segundo ponto era, até 2017, dificultado pela legislação vigente que determinava que o diagnóstico de morte encefálica só podia ser feito por um neurocirurgião ou neurologista. Naquele ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) alterou essa cláusula para incluir também médicos intensivistas e de emergência como habilitados para fazer o diagnóstico.
Ao mesmo tempo em que alterou a legislação, o CFM passou a oferecer também cursos de capacitação para os médicos, voltados a profissionais de qualquer área de especialidade.
"Isso ampliou muito a possibilidade de diagnóstico. No Brasil, existem estados, como o Acre, que só tinham um neurologista no estado inteiro. Imagina depender desse único médico para diagnóstico. Agora, há a possibilidade de contar com outros profissionais", explica Gisele Sampaio Silva, neurologista e secretária-geral da Academia Brasileira de Neurologia.
Para completar o diagnóstico, são exigidos dois exames clínicos, feitos por médicos distintos e realizados com um intervalo de uma hora. Caso em qualquer um desses exames o paciente apresente algum sinal de atividade cerebral, o diagnóstico de morte encefálica não pode ser determinado.
Um terceiro exame, chamado de complementar, é feito com o auxílio de equipamentos, como eletroencefalograma ou doppler transcraniano.
A notificação de morte encefálica, no entanto, não encerra por si só a questão da doação de órgãos. Após o diagnóstico, são acionadas as chamadas Cihdotts (comissões intra-hospitalares de doação de órgãos e tecidos para transplantes) ou as Organizações de Procura de Órgãos (OPOs), ligadas às secretarias estaduais de Saúde.
Essas organizações, além de notificar as centrais estaduais de transplantes sobre o potencial doador, são responsáveis pela entrevista familiar e dão apoio durante todo o processo de doação. Para não haver conflito de interesse, é essencial que haja uma separação clara entre o corpo médico que realiza o diagnóstico e as equipes que atuam nas Cihdotts ou nas OPOs.
Aqui de novo o exemplo espanhol, que implementou uma estrutura forte de rede hospitalar e a comunicação com a sociedade para aumentar as taxas de doação de órgãos no país. Em 2019, 88% dos pacientes com diagnóstico de morte encefálica viraram doadores efetivos, segundo dados da Organização Nacional de Transplantes espanhola.
No Brasil, alguns estados, como Paraná e Santa Catarina, além do Distrito Federal, que detêm os maiores índices de notificação de morte encefálica PMP, capacitaram e melhoraram seus sistemas de doação e transplante de órgãos, contando com uma estrutura hospitalar ou estadual rápida, eficaz e de atuação todos os dias, 24 horas por dia.
No DF, as equipes das OPOs estaduais já monitoravam as notificações de morte encefálica. Quando algum paciente com potencial de morte cerebral é detectado, a OPO já é acionada e começa o preparo familiar, independente de ser doador ou não, explica Camila Hirata, enfermeira e diretora da Central de Transplantes do DF.
Para ela, a principal dificuldade nos estados ainda é a capacitação dos profissionais, mas há ainda a questão de a morte ser um tabu na sociedade. "Temos esse cuidado de tratar de um assunto delicado em um momento tão difícil para a tomada de decisões. O diálogo é estabelecido com transparência [com a família], tentamos explicar que, infelizmente, não havia mais nada a ser feito para salvar aquela vida. Se desde o momento de entrada do paciente no hospital a família é acolhida, sabe tudo o que foi feito para tentar salvar a vida daquele ente querido, essa pessoa pode se dispor a doar os órgãos do seu familiar", completa.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que as notificações de morte cerebral chegam à Central Nacional de Transplantes pelos estabelecimentos de saúde por meio de protocolo definido e que as equipes das OPOs ou das Cihdotts são capacitadas por meio de cursos, oficinas com aulas práticas e teóricas e ensino a distância organizados pelos hospitais, pelas centrais estaduais e pela própria pasta, por meio de parcerias para manter os profissionais atualizados.
"Em esforço conjunto, o Sistema Nacional de Transplantes e as Centrais Estaduais de Transplantes promovem periodicamente cursos de capacitação, inclusive para determinação da morte encefálica, principalmente para os estados com números mais baixos de diagnóstico de morte encefálica."
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