BRUNA FANTTI
RIO DE JANEIRO - ""Queturiene". Assim pedia para ser chamada a ex-deputada federal Flordelis dos Santos de Souza, 61, pelos jovens que passou a cuidar como filhos e evangelizar em sua casa na década de 1990, no Rio de Janeiro. O vocativo divino era uma alusão aos querubins, mensageiros de Deus segundo a Bíblia.
No domingo passado (13), ela foi condenada a 50 anos e 28 dias de prisão por ser considerada mandante da morte do marido Anderson do Carmo, 42, jovem acolhido por ela como filho aos 14 anos e que virou pastor. A motivação do crime foi mundana: dinheiro e poder. Ela nega a acusação e vai recorrer da sentença.
Carmo foi morto em 2019 com 31 perfurações, nove delas na região pélvica, um indicativo de que o crime poderia ser também uma vingança de cunho sexual. E, segundo quem confessou participar da trama para o assassinato, ele supostamente abusava de mulheres da família com 55 filhos. No entanto, a investigação não comprovou a acusação.
A Promotoria afirma que a motivação foi a disputa da quantia arrecadada pela igreja: cerca de R$ 180 mil por mês. Carmo também tinha perfil controlador. Flordelis disse que "ele escolhia desde a roupa à peruca" dela. Ela também dizia que ele a agredia constantemente e que aceitava isso por ser evangélica.
Para além de manipulação religiosa e das disputas, a apuração do crime indicou que o slogan alavancado para eleger Flordelis à deputada federal mais votada do Rio, em 2018, era uma fachada. Ela não era mãe de 55 filhos.
Somente cinco foram adotados. Um era falso biológico. Daniel Santos, que Flordelis e Carmo conseguiram registrar como gerado pelo casal, soube pela polícia que sua certidão era uma farsa.
Entre os filhos, alguns tiveram descendentes entre si, outros adotaram sobrinhos. Simone Rodrigues, filha biológica do primeiro casamento de Flordelis com um pastor, teve três filhas com André Oliveira (filho afetivo da primeira geração da família e um dos absolvidos pelos jurados).
Simone também passou a criar Moisés, filho de uma irmã afetiva. Carlos Ubiraci, a quem Flordelis salvou do vício das drogas aos 12 anos, teve filhas com Cristiana Rangel, também filha afetiva da chamada primeira geração.
Nas palavras do investigador Tiago Vaz, havia "facções" na casa. "Alguns eram mais privilegiados, com comida e benefícios", disse. A falta de união ficou evidente no tribunal, quando filhos depuseram contra a mãe. Daniel foi um deles.
O promotor Décio Viegas chamou de escravidão o tratamento dado aos filhos adotados já nos anos 2000. "Eram escravos. Se Flordelis ou Anderson chegassem de madrugada, eram obrigados a levantar e a cozinhar", afirmou.
Antes da união entre Flordelis e Carmo, ele namorou a irmã Simone -e, como padrasto, dificultava seus relacionamentos. Ela relatou que, quando pediu dinheiro para um tratamento de câncer, ele passou a estuprá-la. Ainda de acordo com a versão dela, ao presenciar Carmo violentar sua filha, passou a desejar sua morte.
A Promotoria afirma que, antes de ser morto a tiros, Carmo foi envenenado. Simone teria participado das tentativas de homicídio do pastor com chumbinho, que resultaram em seis internações. Nesse crime, os jurados consideraram que ela agiu por um motivo nobre (defender a filha) e a condenaram por tentativa de homicídio privilegiado.
Uma das internações de Carmo ocorreu logo após Flordelis ser eleita deputada. Ela escreveu a um dos filhos: "Até quando vamos ter que aguentar esse traste no nosso meio? Me ajuda, cara. Por amor a mim".
"Ela não disse por amor a Deus, e sim por amor a mim. Ela se colocava como divindade aos filhos", apontou a promotora Mariah Paixão. Ela também intitulou alguns filhos anjos e trocou seus nomes. Wagner passou a chamar-se Misael; Anderson, Niel; Simone, Hebréia; Alexsander, Luan. Todos eram obrigados a usar a nova identidade, segundo os relatos.
Conhecida por profetizar desde criança, próximo ao crime a pastora passou a dizer que tivera uma visão de que Carmo iria morrer cedo. Ele chegou a encontrar um plano para matá-lo em seu tablet, escrito pela filha Marzy Teixeira ao irmão Lucas Cézar Souza. Uma testemunha disse que Marzy apenas escreveu o plano ditado por Flordelis.
Além da ex-deputada federal, outros sete acusados foram condenados, a maioria em julgamentos anteriores que ocorreram em novembro de 2021 e em abril deste ano. Dos cinco julgados no último domingo, três foram inocentados.
A filha Simone Rodrigues foi condenada a 31 anos, 4 meses e 20 dias de reclusão, em regime fechado, por homicídio triplamente qualificado, tentativa de homicídio e associação criminosa armada.
André Luiz Oliveira e Marzy Teixeira, além da neta Rayane dos Santos, foram considerados inocentes.
Antes de migrar para o noticiário policial, Flordelis era famosa por ser cantora gospel e admirada por celebridades. Um filme sobre sua trajetória foi realizado, em 2009, com os atores Bruna Marquezine, Cauã Reymond, Reynaldo Gianecchini e Deborah Secco. Flordelis interpretou a si mesma.
Após o crime, a ex-jogadora da seleção brasileira Paula do Vôlei, atualmente pastora e psicóloga, passou a frequentar a casa. Duas filhas afirmaram que ela ajudava a treinar os depoimentos; Paula nega. A ex-jogadora acompanhou até o final o julgamento, cantando louvores pelos corredores do tribunal.
Quando a juíza Nearis Acre leu a sentença no tribunal do júri em Niterói, alguns se desesperaram, entre eles, seu atual namorado, Allan Soares, que foi às lágrimas. No mesmo dia, ele escreveu em uma rede social: "Não vou desistir de você".
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