Ao menos por enquanto, as vacinas desenvolvidas contra a Covid-19 estão vencendo a corrida contra o aparecimento de novas variantes do vírus causador da doença. Os dados publicados até agora indicam que algumas formas do Sars-CoV-2 driblam parcialmente os anticorpos produzidos depois da primeira dose da imunização. Mas o reforço do sistema de defesa do organismo impulsionado pela segunda dose das vacinas é suficiente para produzir um bom grau de proteção, ainda que talvez menor do que o esperado anteriormente.
A questão é saber até quando a situação continuará nesse patamar de risco aparentemente aceitável. As incertezas ainda são grandes, a começar pela trajetória que a transmissão do vírus seguirá nos próximos meses e anos em nível global.
A possível continuidade de níveis elevados de transmissão viral está entre os fatores-chave: quanto mais um vírus circula pela população de seus hospedeiros, maiores suas chances de produzir um número elevado de cópias de seu material genético. Tais cópias podem vir com "erros de impressão", e eles é que funcionam como matéria-prima para que a seleção natural atue.
Algumas versões do vírus podem, por acaso, ser mais eficazes para infectar células humanas ou saltar de pessoa para pessoa, e essas tenderão a se multiplicar e suplantar as demais, processo que é basicamente o que tem acontecido em diferentes locais afetados pela pandemia mundo afora.
"Isso é um fenômeno totalmente esperado e dentro do normal da biologia", diz Maurício Lacerda Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (SP). Ele ressalta que as evidências disponíveis hoje apontam apenas para os chamados escapes parciais em relação ao efeito das vacinas - nenhuma variante identificada até agora é capaz de um escape total.
"Existem milhares de variantes descritas até agora, mas só algumas realmente podem ser um problema para a gente. São as chamadas VOCs [sigla inglesa de 'variantes que causam preocupação']", diz Rômulo Leão Silva Neris, doutorando em imunologia na UFRJ. O que as diferencia é a presença de mutações que afetam porções muito específicas da proteína da espícula, a chave usada pelo vírus para se conectar a receptores - grosso modo, fechaduras - na superfície das células humanas.
"Outras mutações até podem acontecer em outras proteínas virais e aumentar ou modificar habilidades dos vírus, mas isso não interferiria, em princípio, com as vacinas, porque, tirando as feitas com vírus inativados [caso da Coronavac], as que temos se baseiam só na estrutura da espícula mesmo", explica ele.
Ou seja, enquanto a maioria das vacinas foi projetada para produzir uma reação do sistema de defesa do organismo contra um formato padrão da chave do vírus, certas variantes contam com uma forma nova da chave, que não só é capaz de destrancar as células com mais facilidade como também não é reconhecida pelo corpo vacinado com a mesma eficácia.
Embora diversas VOCs tenham demonstrado essa maior transmissibilidade se comparadas a formas anteriores do Sars-CoV-2 - isso vale, por exemplo, para a variante gama, detectada originalmente em Manaus -, a vantagem delas em relação às vacinas ainda não está 100% clara, em especial quando os pacientes já receberam duas doses.
Nesse ponto, os dados mais preocupantes são os que envolvem a variante delta, identificada na Índia, tanto no que diz respeito à transmissão quanto na capacidade de evitar parcialmente o efeito das vacinas.
Nesta semana, por exemplo, um estudo publicado na revista científica Nature por pesquisadores do Instituto Pasteur, na França, revelou que pessoas que receberam uma única dose das vacinas da Pfizer ou da AstraZeneca produziram anticorpos que mal chegaram a ter efeito sobre a variante Delta. Os que tinham recebido a segunda dose geraram anticorpos que se saíram bem melhor contra essa forma do vírus, com taxa de eficácia estimada como superior a 60% em ambos os casos.
Por enquanto, não há dados conclusivos mostrando que algumas das vacinas disponíveis seriam inúteis contra essa variante, embora todas aparentem apresentar alguma redução de eficácia. Também é preciso levar em conta que usar apenas a produção de anticorpos para medir o nível de proteção do organismo é um método relativamente simplista, já que outra barreira protetora é a chamada resposta imune celular, envolvendo coisas como as células T, mais difíceis de quantificar.
Mesmo assim, a discussão sobre possíveis novas formulações vacinais, direcionadas especificamente contra variantes existentes agora ou que surjam no futuro, tem se intensificado.
A Pfizer, por exemplo, anunciou no dia 8 de julho que está desenvolvendo uma versão de seu imunizante voltada especificamente para enfrentar a variante delta. As fabricantes de vacinas também têm analisado a possibilidade de uma terceira dose de reforço, suficiente para acordar o sistema imune mesmo diante de variantes mais insidiosas.
Essa última possibilidade, por enquanto, foi criticada pelos órgãos regulatório e epidemiológico dos EUA, a FDA e o CDC. "Estaremos preparados para doses de reforço se e quando a ciência mostrar que elas são necessárias", disseram os órgãos em comunicado conjunto.
No futuro, conforme o Sars-CoV-2 continua a evoluir, novas doses seriam inevitáveis? "Pelo que temos visto, sim. Inclusive, há diversos projetos de vacinas atuais levando isso em conta", diz Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale (RS) e coordenador da Rede Corona-ômica, do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações).
"Faz sentido um 'update' periódico, mas talvez não com a frequência anual de um vírus da gripe. Assim que você diminuir de forma significativa a circulação do coronavírus, o aparecimento de variantes também vai diminuir", pondera Maurício Nogueira.
Se e quando as novas versões vacinais forem necessárias, é possível pensar em vantagens comparativas na atualização de diferentes tipos de imunizantes.
Por um lado, vacinas como a da Pfizer, que são basicamente um pedaço de material genético viral, uma sequência de letras de RNA (molécula-prima do DNA), podem ser remodeladas com muita facilidade.
"Por outro lado, no caso da Coronavac, por exemplo, basta trocar a cepa do vírus, e isso você faz em meia hora no laboratório", brinca Nogueira. "A verdade é que os atuais métodos de biologia molecular facilitam muito todas as possibilidades, embora ainda seja preciso fazer testes de eficácia posteriormente."
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