Conteúdo verificado: Vídeo compartilhado no Kwai defende que os imunizantes que usam a tecnologia de RNA mensageiro (Pfizer e Moderna) geram doenças autoimunes, levam a quadros severos respiratórios e cardiovasculares e podem matar dentro de poucos minutos.
É falso um vídeo viral publicado no Kwai que estabelece relação de causa e consequência entre vacinas de RNA mensageiro e doenças autoimunes – quando o sistema imunológico produz anticorpos contra componentes saudáveis do organismo. O vídeo também cita, de forma enganosa, que a enfermeira norte-americana Tiffany Dover morreu após receber a dose da Pfizer contra a covid-19.
O argumento utilizado no vídeo não tem respaldo científico. Fia-se em concepções erradas sobre como as vacinas de RNA mensageiro se processam no organismo e fornece um conceito errado sobre o significado de doença autoimune.
O conteúdo afirma que, se um corpo vacinado entrar em contato com o Sars-Cov-2 e atuar para neutralizá-lo, “estará combatendo algo que ele mesmo está produzindo”. E conclui: “Isso se chama doença autoimune”. A lógica não é verdadeira e vai na contramão do que especialistas explicaram ao Comprova para esta verificação.
A doença autoimune consiste no mau desempenho do sistema imunológico, que passa a atuar contra células saudáveis do próprio organismo. Não há evidências de que vacinas levem a esse quadro.
Procurado, o autor da publicação, Adilson Winans Goldberg, respondeu que viu a publicação em um “grupo de notícias”. O Comprova recebeu o vídeo por meio do WhatsApp, canal disponível para que leitores deem sugestão de conteúdos que podem ser checados.
O Comprova considera falso o conteúdo que tenha sido inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
Inicialmente, buscamos informações em verificações acerca da vacina de mRNA e doenças já publicadas pelo Comprova, como esta, da semana passada. Depois, entrevistamos o virologista, coordenador do curso de biomedicina do Instituto Brasileiro de Medicina e Reabilitação (IBMR) e membro da Rede do Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde, Raphael Rangel.
A imunologista Letícia Sarturi, mestre pela Universidade de São Paulo e doutora em Biociências e Fisiopatologia pela Universidade Estadual de Maringá, também foi consultada. Realizamos uma busca na internet pelas reportagens a respeito de Tiffany Dover, enfermeira que desmaiou após receber a vacina e foi citada no vídeo como se tivesse morrido. Encontramos checagens sobre esse episódio feitas pelo Estadão, Aos Fatos, Agência Lupa, Boatos.org e Fato ou Fake.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 28 de setembro de 2021.
Indagada sobre como as vacinas de mRNA agem no organismo humano, a imunologista Letícia Sarturi afirmou de início que o mRNA é um trecho de RNA responsável por “dar a receita” para que as células produzam exatamente a proteína spike do Sars-Cov-2.
A proteína Spike é exclusiva do vírus da covid-19 e fica em sua superfície. É usada para entrar nas células do corpo. Sarturi salienta que o mRNA destes imunizantes é “bem produzido” e executado mediante “controle rígido”.
Ainda de acordo com ela, o mRNA está dentro de um lipídio cuja função é “entrar” nas células para que elas produzam sua própria proteína spike. As células então fazem o processamento desta proteína e a “apresentam” para os linfócitos T.
Estes linfócitos T são os responsáveis por “lembrar” de combater o vírus sempre que entrarem em contato com ele.
A explanação da pesquisadora está em linha com o que afirma o Centro de Controle de Doenças(CDC, na sigla em inglês) dos Estados Unidos sobre o funcionamento da tecnologia mRNA.
As vacinas que atualmente usam a tecnologia de mRNA são a Pfizer, desenvolvida pela empresa de biotecnologia alemã BioNTech, e a estadunidense Moderna; esta não disponível no Brasil. O FactCheck.org disponibilizou guias com informações sobre a Pfizer e a Moderna.
O autor do vídeo cita a enfermeira americana Tiffany Dover, que desmaiou durante uma entrevista logo depois de tomar uma dose da vacina contra covid-19 da Pfizer, no dia 17 de dezembro de 2020.
Defendeu-se, no material publicado no Kwai, o argumento de que vacinas mRNA podem matar em uma questão de minutos atacando o sistema respiratório, “como o que aconteceu com Tiffany Dover”.
Tiffany, no entanto, não morreu. O boato vem circulando desde o dia 21 de dezembro de 2020, e já foi desmentido pelo Estadão, Aos Fatos, Agência Lupa, Boatos.org e Fato ou Fake.
O hospital CHI Memorial, localizado em Chattanooga, Tennessee, onde ela trabalhava na época, chegou a divulgar uma nota afirmando que a enfermeira estava saudável.
Depois do episódio, publicações em outras redes sociais relacionaram o desmaio à vacinação, o que é falso.
Tiffany Dover falou, em entrevista à Estação de TV WRCB Chattanooga: “Eu tenho um histórico de resposta vagal hiperativa e, com isso, se eu sinto dor por qualquer coisa (…), se eu bato um dedo do pé, eu posso simplesmente desmaiar”, explicou. “Eu provavelmente desmaiei seis vezes nas últimas seis semanas, é comum para mim”, acrescentou.. Ou seja, ela não atribuiu seu desmaio à vacina, mas à dor no momento da injeção.
O virologista Raphael Rangel, do IBMR, explica que a doença autoimune se caracteriza essencialmente pela incapacidade do corpo em “tolerar imunologicamente algumas proteínas que nós mesmos produzimos”.
O corpo humano, prossegue, “consegue distinguir o que nós produzimos do que é externo”. Ou seja, a doença autoimune é um problema imunológico não ocasionado pela vacina de RNA mensageiro – esta, um elemento inicialmente externo.
“Devemos estar sempre atentos e empenhados para desconstruir narrativas mentirosas contra as vacinas”, adverte o virologista.
Não se sabe ao certo o que leva o sistema imunológico a atacar células do próprio organismo. Doenças autoimunes geralmente são crônicas, ou seja, duram mais de um ano e necessitam de cuidados médicos constantes. Exemplos de doenças autoimunes são esclerose múltipla, artrite reumatoide e o lúpus.
No vídeo, o narrador cita que as vacinas produziriam danos ao sistema nervoso central e gerariam paralisia de Bell – o enfraquecimento ou a paralisia de um dos lados do rosto. Para ilustrar o primeiro exemplo, o conteúdo mostra uma mulher com tremores e dificuldades para caminhar. O Comprova printou a imagem da mulher e pesquisou a origem dela no Google.
O primeiro resultado da pesquisa é de um perfil no Twitter (@constanzag77) com publicações – no formato de fio – com série de supostos exemplos de eventos adversos causados pela vacinação contra a covid-19. Ao clicar no primeiro tuíte da série de posts, é possível verificar que o Twitter o classifica como “enganoso”.
A terceira publicação da sequência leva ao vídeo usado no conteúdo aqui verificado. No tuíte, o perfil escreve: “Mamãe de Brant Griner depois de receber a vacina da Pfizer.” Na mesma postagem, há o link da conta no Facebook de Brant Griner.
O Facebook alerta na parte inferior da publicação de Griner que a publicação é sem contexto. A plataforma disponibilizou para os usuários uma checagem do Estadão Verifica, que diz não haver provas de que o vídeo da mulher tenha relação com a vacina da Pfizer.
A checagem do Estadão leva ao PolitiFact, site americano de verificação de fatos, para quem Griner disse que a mãe, Angelia Gipson Desselle, de 45 anos, tomou a vacina Pfizer em 5 de janeiro e três dias depois teria começado a sentir sensações similares a de convulsões na perna esquerda. Mas ele se recusa a responder onde ela tomou a vacina, em que hospital ou quem aplicou o imunizante. Alegou que iria preservar a privacidade da mãe.
Ao Estadão Verifica, o Departamento de Saúde do Estado de Louisiana disse que investiga o caso e que não o confirma como efeito adverso da vacina.
No caso dos quatro casos de paralisia de Bell, o vídeo publicado no Kwai usa um print somente do título de uma matéria publicada no site de notícias R7 em dezembro de 2020, dentro da qual se lê um relatório publicado pelo FDA (Food and Drug Administration), agência reguladora dos Estados Unidos. Nele, os pesquisadores afirmam não haver base para conclusão de que houve uma relação causal entre a vacina e os casos.
Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre pandemia, políticas públicas do governo federal e eleições. O vídeo verificado aqui teve mais de 15 mil curtidas e 25 mil compartilhamentos. O Kwai é um aplicativo chinês criado para compartilhamento de vídeos rápidos. Foi pensado inicialmente como uma plataforma para troca de imagens GIF. Em 2012 ganhou o formato atual.
O conteúdo fraudulento é prejudicial por desinformar e ter potencial de afastar as pessoas da vacinação num contexto em que o país se aproxima da marca de 600 mil mortos pelo vírus. A comunidade científica tem emitido sucessivos alertas de que somente a vacinação em massa devolverá o mundo a um ambiente de normalidade.
Conteúdos que tentam desacreditar as vacinas ou minimizar os riscos da pandemia, portanto, são perigosos porque podem levar a população a colocar a saúde em risco. Em alguns comentários na publicação, é possível verificar o potencial de desinformação dessas postagens.
“Conhecimento é poder, parabéns”, escreveu um usuário em resposta ao vídeo falso. “Pessoal, divulguem esse vídeo. Mais um falando a verdade. Deus tenha misericórdia de nós”, reagiu outra usuária da rede social. “Essas vacinas são para os cobaias”.
O Comprova já publicou diversos conteúdos sobre imunização, como o que informa que morte de adolescente não tem relação causal com vacina da Pfizer, o do médico que engana ao afirmar que os imunizantes não funcionam contra a variante delta e o post que desinforma afirmando que o CDC e Anthony Fauci não acreditam nas vacinas.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
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