Agência FolhaPress - A Vale foi alertada em diversas ocasiões para a falta de segurança da barragem 1 da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), que rompeu em 25 de janeiro e deixou 270 mortos, sendo 18 ainda não encontrados.
As afirmações estão no livro "Brumadinho: a Engenharia de um Crime", lançado nesta quarta-feira (23) pelos jornalistas Murilo Rocha e Lucas Ragazzi. A obra parte da investigação da Polícia Federal para contar o que se sabe até agora da tragédia, entremeada pelo drama das 270 vidas perdidas.
Em novembro de 2017, segundo o livro, a Vale promoveu um Painel Independente de Especialistas para Segurança e Gestão de Risco de Estruturas Geotécnicas (Piesem), com especialistas e consultores independentes.
A engenheira Maria Regina Moretti, consultora da Potamos Engenharia e Hidrologia, alertou que a barragem tinha um fator de segurança de 1,06, abaixo do índice de 1,3 considerado o mínimo recomendável mundialmente e abaixo mesmo do coeficiente mínimo orientado pela ABNT de 1,1.
Em 21 de março de 2018, a Vale convocou uma reunião com a Potamos para rediscutir o fator de segurança da barragem, preocupada em não conseguir a declaração de condição de estabilidade da estrutura.
O livro mostra que a reunião durou duas horas e terminou em impasse, com os engenheiros da Potamos "irredutíveis". O gestor de contratos da Vale, Washington Pirete, chega a chamar a argumentação da consultoria de "muito negativa".
No dia seguinte, Pirete encaminhou um email com uma ata da reunião sem retratar a discordância entre as empresas sobre o fator de segurança. O sócio da Potamos Rodrigo Barbosa não reconheceu o email como ata e decidiu interromper a participação da companhia em qualquer atividade geotécnica em barragens da Vale, diz o livro.
Em outro painel de especialistas independentes, em junho de 2018, a empresa Tüv Süd calculou um novo fator de segurança: 1,09, ainda abaixo do mínimo recomendado.
Para diminuir a quantidade de água na barragem e aumentar seu fator de segurança, a Vale começou a instalar na barragem 1 drenos horizontais profundos (DHPs). Mas a instalação não era consenso, diz o livro, porque poderia piorar a instabilidade da estrutura se os tubos não funcionassem perfeitamente.
Mesmo assim, a empresa levou a ideia adiante. Em 11 de junho de 2018, quando instalava o 15º dreno, dois aparelhos identificam um repentino aumento de pressão sobre o solo, o que força a mineradora a parar a instalação e começa uma operação de emergência para conter o incidente
Um diretor da Vale, Renzo Albieri, faz um relatório do incidente em que diz que "a percepção da equipe de geotecnia é de que caso fosse necessário acionar o PAEBM [plano de emergência] a Vale não estaria preparada."
Para aprovar a barragem em órgãos de fiscalização, a companhia alemã Tüv Süd criou em 2018 parâmetros sem base científica que alargavam os critérios de classificação e incluíam a estrutura em uma faixa aceitável.
Os engenheiros da consultoria adotaram um coeficiente mínimo de segurança de 1,05, sem respaldo técnico, mas que colocaria a barragem da Vale (que tinha fator de segurança de 1,09) em nível aceitável.
O relatório da Tüv Süd cita um estudo de 2015 dos engenheiros americanos Ben Leshchinsky e Spencer Ambauen para embasar os parâmetros adotados pela empresa. Procurados pelos autores do livro, os pesquisadores disseram que seu artigo não propõe fator de segurança de 1,05 para barragens como aquela.
Por vezes, os executivos da Tüv Süd trataram de pressão da mineradora para aprovar a segurança das barragens. Em um email, o engenheiro Vinicius Wedekin escreveu aos colegas: "Como fica a credibilidade dos resultados? Sempre que não passar a Vale vai envolver uma outra empresa, até ter um resultado benéfico para ela?"
Em outro, Makoto Namba diz: "Mas como sempre, a Vale irá nos jogar contra a parede e perguntar: e se não passar, irão assinar ou não?".
O livro também aborda um episódio em 8 de março de 2018 em que, com um radar para verificar movimentação na estrutura da barragem, um engenheiro avisa que houve deslocamento de 10 centímetros. O mesmo radar mapeou uma deformação no solo de uma área superior a 14,8 mil metros quadrados da barragem, uma semana antes de a estrutura se romper.
Até agora, o consenso entre investigadores e especialistas é que a barragem em Brumadinho se rompeu por liquefação, segundo o livro.
Em setembro, a Polícia Federal concluiu o primeiro inquérito sobre a tragédia, indiciando 13 funcionários da Vale e da Tüv Süd, além das duas empresas, por falsidade ideológica e uso de documentos falsos.
A polícia ainda aguarda a conclusão das perícias sobre as causas do rompimento para apontar responsáveis pelos crimes ambientais e pelas 270 mortes.
A Folha procurou a Tüv Süd e a Vale para responder às denúncias. A empresa alemã disse que não comentaria os fatos expostos no livro, mas que "continua oferecendo sua total cooperação às autoridades e instituições envolvidas na apuração dos fatos."
A Vale também não quis comentar o caso à Folha. O último capítulo do livro é um posicionamento da empresa, no qual diz que "a legislação brasileira não definia, até 18 de fevereiro de 2019, um fator de segurança mínimo para a avaliação de estabilidade de barragens sob condição não drenada."
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