Conteúdo investigado: Vídeo de entrevista do militar reformado Luiz Eduardo Rocha Paiva ao Jornal da Cidade Online em que ele afirma que a soberania do Brasil está ameaçada por conta de declarações do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o Conselho de Segurança da ONU e de doações da Noruega e da Alemanha para o Fundo Amazônia.
Onde foi publicado: TikTok, Twitter e YouTube.
Conclusão do Comprova: É enganoso o conteúdo de uma entrevista em que o general reformado Luiz Eduardo Rocha Paiva afirma que a soberania brasileira está ameaçada por causa de declarações do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e por conta das doações feitas por Noruega e Alemanha para o Fundo Amazônia. Rocha Paiva mistura assuntos e distorce o sentido deles.
Primeiramente, ele engana ao dizer que Lula propôs, durante a campanha eleitoral, que o Brasil acate as decisões do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) sem que elas passem pelo Congresso Nacional, o que não é verdade. Lula propôs que haja mudanças na ONU e que mais países, de outros continentes, passem a ter cadeira no Conselho de Segurança da organização, e não apenas os vencedores da Segunda Guerra Mundial. Além disso, ele defendeu o fim do poder de veto, que hoje é um direito apenas para os membros fixos do conselho: Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido e China.
O petista também defendeu, em mais de uma ocasião, a criação de uma espécie de fórum multilateral com um poder de decisão definitivo para questões a respeito de mudança climática. Segundo ele, se as decisões tomadas em conjunto não forem adotadas pelos países, não haverá avanço na questão da mudança climática.
A fala de Rocha Paiva sobre a ameaça à soberania nacional por causa das doações de Noruega e Alemanha ao Fundo Amazônia também é enganosa. Ele afirma, sem provas, que os dois países se beneficiam em termos de pesquisas com a biodiversidade da Amazônia ao fazerem doações para o fundo, o que é falso. Noruega e Alemanha são os maiores doadores do fundo, mas o contrato não prevê contrapartidas em termos de pesquisa, e sim resultados de redução da emissão de gases decorrentes do desmatamento. Os repasses foram suspensos após o presidente Jair Bolsonaro (PL) extinguir dois comitês de governança do Fundo Amazônia, em 2019.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O vídeo aqui investigado teve cerca de 230 mil visualizações no TikTok, 113 mil no Twitter, além de 632 mil no vídeo original completo, no YouTube, até o dia 6 de dezembro de 2022.
O que diz o responsável pela publicação: O Jornal da Cidade Online, responsável pelo vídeo, foi procurado, mas não respondeu até a publicação desta checagem. O site já foi desmentido pelo Projeto Comprova (1, 2 e 3) e foi um dos investigados pela CPI das Fake News. Luiz Eduardo Rocha Paiva também foi procurado, mas não respondeu até a publicação deste texto. Ele coordenou o chamado ‘Projeto de Nação, o Brasil em 2035’, que defende, entre outras coisas, a cobrança no SUS e a exploração na Amazônia.
Como verificamos: Após transcrever o áudio do vídeo sob investigação, o Comprova buscou por notícias que falassem dos temas mencionados por Luiz Eduardo Rocha Paiva na entrevista: a relação da Noruega e da Alemanha com o Fundo Amazônia e a exploração da biodiversidade na região; declarações de Lula sobre o Conselho de Segurança da ONU e sobre governança e clima.
Além de uma checagem sobre a Noruega e a floresta Amazônia feita pelo Comprova em 2019, foram encontradas reportagens sobre as doações da Noruega e da Alemanha ao Fundo Amazônia, a suspensão dos repasses pelos dois países e o anúncio de possível retomada das doações após a eleição de Lula. Em seguida, o Comprova buscou, no site oficial do Fundo Amazônia, informações sobre doações, funcionamento e governança. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que administra o Fundo, foi procurado para falar sobre o status atual.
Sobre as falas de Lula a respeito do Conselho de Segurança da ONU e sobre governança para a questão climática, foram acessados os artigos da Constituição Federal de 1988 mencionados por Rocha Paiva e consultada a professora Carolina Cyrillo, especialista em Direito Constitucional, que leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Por fim, foram pesquisadas informações sobre o canal responsável pelo vídeo – o Jornal da Cidade Online – e sobre o entrevistado, o militar reformado do Exército Luiz Eduardo Rocha Paiva.
Rocha Paiva acusou no vídeo checado que o Fundo Amazônia, mantido majoritariamente por doações da Noruega e da Alemanha, beneficiaria os dois países em pesquisas para exploração da biodiversidade do bioma. Isso não é verdade. O Fundo Amazônia foi criado em 2008 e tem como finalidade captar doações para investimentos não reembolsáveis em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento, e de promoção da conservação e do uso sustentável da Amazônia Legal.
O fundo é administrado pelo BNDES, que informou ao Comprova, em nota, que os repasses feitos não dão benefícios aos países doadores na exploração da biodiversidade da Amazônia, diferentemente do que afirma o militar reformado no vídeo.
“Em relação às contrapartidas, o BNDES esclarece que o Fundo Amazônia é um fundo de REDD+, o que significa que é um fundo que recebe doações baseadas em resultados já alcançados na redução de emissões em função da redução do desmatamento. Não há contrapartidas relacionadas”, completa a nota.
A Petrobras também fez repasses ao fundo – R$ 7 milhões, de 2011 a 2018 –, mas a Noruega e a Alemanha são os maiores doadores. De 2009 a 2018, a Noruega doou R$ 1,2 bilhão, enquanto os repasses da Alemanha somaram R$ 67 milhões de 2010 a 2017. Os dois países, contudo, suspenderam os repasses em 2019 após o governo Bolsonaro extinguir em um decreto de 11 de abril daquele ano dois comitês que faziam parte da governança do Fundo Amazônia – o Comitê Orientador (COFA) e o Comitê Técnico (CTFA).
O fundo, que paga desde a compra de caminhões de combate a incêndio para o Ibama até camisetas dos brigadistas, acabou ficando parado. Após a eleição de Lula, os dois países sinalizaram que estão dispostos a retomar os repasses. No início de novembro deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu que Bolsonaro foi omisso na gestão do Fundo e deu 60 dias para o governo reativá-lo, como noticiou a DW Brasil.
Apesar disso, o BNDES disse ao Comprova que o Fundo Amazônia não está parado e que foram desembolsados no ano passado R$ 117 milhões para projetos já contratados “em prol de ações de combate ao desmatamento, da promoção da conservação ambiental e do desenvolvimento sustentável. Este ano, até novembro foram desembolsados mais R$ 90 milhões”, diz nota.
Numa tentativa de afirmar que Lula ameaçou a soberania brasileira ao “entregar a biodiversidade da Amazônia a outros países”, Rocha Paiva também afirma que uma das propostas do petista durante a campanha eleitoral foi de que o Brasil acatasse as decisões tomadas pelo Conselho de Segurança da ONU e por outros órgãos de governança global sem o aval do Congresso Nacional. De acordo com ele, isso feriria o artigo 49 da Constituição e também ameaçaria a soberania nacional, já que no Conselho de Segurança das Nações Unidas há a prevalência de cinco potências mundiais que, segundo Rocha Paiva, cobiçam a Amazônia.
Mas não é assim. Rocha Paiva mistura assuntos e distorce as falas de Lula. Em agosto deste ano, durante encontro com eurodeputados de esquerda, Lula defendeu mudanças no Conselho de Segurança da ONU, mas não propôs que o Brasil acatasse as decisões sem análise do Congresso. O que Lula disse foi que é preciso ter mais países com representação permanente no Conselho de Segurança, e não apenas os vencedores da Segunda Guerra Mundial.
O Conselho de Segurança da ONU foi criado em janeiro de 1946, após a Segunda Guerra Mundial e, desde então, possui cinco membros permanentes e com poder de veto: Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido e China.
Para Lula, uma mudança relevante seria aumentar o número de membros permanentes no Conselho de Segurança e acabar com o poder de veto.
Em agosto, durante uma entrevista coletiva para a imprensa estrangeira, Lula disse: “A gente vai trabalhar muito para que a gente construa uma nova governança nas Nações Unidas. A ONU de 2022 não pode continuar a ser a ONU de 1948. A geografia do mundo mudou, os países mudaram. Houve um avanço cultural extraordinário em cada país”, disse.
Em novembro, durante a COP 27, no Egito, Lula repetiu a crítica à atual formação do Conselho e defendeu uma reforma na ONU: “Não há nenhuma explicação para que apenas os vencedores da Segunda Guerra Mundial sejam os que mandam e dirijam o Conselho de Segurança”.
Já sobre uma governança global, o que Lula vem defendendo é a criação de uma espécie de “fórum multilateral” com poder de decisão definitivo para questões a respeito de mudança climática. Segundo ele, esse assunto não pode mais ser tratado como questão individual, em que as diretrizes são discutidas globalmente e, depois, cada país decide se vai ou não acatar.
“O que nós precisamos é repactuar os participantes da ONU. É tentar colocar outros países de outros continentes para que a gente crie uma nova governança e preste atenção numa coisa séria: a gente não resolverá a questão climática se não tiver uma governança mundial que decida e que todos tenham que cumprir. Porque, se a gente continuar querendo discutir a questão climática decidindo nos encontros que nós fazemos em nível internacional e, depois, cada país tenta resolver seu negócio no seu estado nacional, [a mudança] não vai acontecer”, disse Lula aos eurodeputados.
O Comprova consultou Carolina Cyrillo, da UFRJ, sobre as alegações de Rocha Paiva, de que as propostas de Lula feririam o artigo 49 da Constituição por atropelar atribuições do Congresso Nacional. Cyrillo explica que isso não é verdade e que as declarações de Lula estão de acordo com a Constituição Federal de 1988.
O artigo 49 da Constituição diz que compete privativamente ao Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”. Segundo ela, o Congresso já decidiu sobre isso: “O Congresso Nacional já decidiu em inúmeras oportunidades que os tratados internacionais em matéria de direitos humanos, como, por exemplo, o sistema da ONU, são compatíveis com a Constituição brasileira. Isso já foi definido, o Congresso já exerceu essa competência”, diz.
Além disso, ela acrescenta que cabe ao presidente da República, de acordo com o artigo 4 da Constituição, exercer a função de chefia de Estado nas relações internacionais e buscar a “integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina”. É o que o petista faz ao defender a participação de mais países na tomada de decisões dentro da ONU, inclusive no que diz respeito às mudanças climáticas.
O vídeo original foi publicado no canal oficial do Jornal da Cidade Online no YouTube. O canal possui cerca de 778 mil inscritos (medição em 5 de dezembro). O título original é: “Exclusivo: ‘Espero que essa gente nefasta não chegue ao poder’, afirma general Rocha Paiva”. A peça de desinformação verificada é um recorte da entrevista original.
O site do Jornal da Cidade Online possui um histórico de publicações desinformativas e hiperpartidárias. Conforme já noticiado pela agência de checagem Aos Fatos, o portal foi um dos principais sites difusores de conteúdos falsos no WhatsApp durante o pleito de 2018.
O veículo também foi um dos investigados pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, criada em 2019 para, conforme informado pelo Senado Federal, “investigar, no prazo de 180 dias, os ataques cibernéticos que atentam contra a democracia e o debate público; a utilização de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições 2018; a prática de cyberbullying sobre os usuários mais vulneráveis da rede de computadores, bem como sobre agentes públicos; e o aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio”.
De acordo com uma publicação do UOL, o site alvo da CPMI continha cerca de 930 anunciantes. O veículo e seu proprietário, José Pinheiro Tolentino Filho, já foram alvos de processos e condenações pela publicação de notícias distorcidas, além de ataques a desembargadores do Rio de Janeiro, em 2019. Dois magistrados processaram o site, e a Justiça condenou o veículo a indenizar os denunciantes por danos morais. Os valores das indenizações foram de R$ 150 mil e R$ 120 mil.
O UOL ainda informa que o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na época, Felipe Santa Cruz, ganhou uma ação por danos morais contra o site, bem como por conta de publicações de conteúdos falsos, com indenização no valor de outros R$ 150 mil.
Conforme publicado pelo Aos Fatos, o Jornal da Cidade Online faz parte de uma rede articulada de desinformação que compartilhou estratégia de monetização por meio de anúncios com o site “Verdade Sufocada”, mantido pela viúva do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), Joseita Brilhante Ustra. O coronel foi o primeiro militar condenado por sequestro e tortura durante a ditadura militar no Brasil.
O entrevistado no vídeo, Rocha Paiva, também tem vínculos com o coronel condenado por tortura: ele é ex-presidente do grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), a ONG de Brilhante Ustra. Rocha Paiva ainda coordenou o chamado ‘Projeto de Nação, o Brasil em 2035’, que defende, entre outras coisas, a cobrança no SUS e a exploração na Amazônia, com o desenvolvimento de “pesquisas e modelos de negócio para o aproveitamento rentável da biodiversidade regional com vistas aos mercados internos e externos”, além de flexibilização da legislação para exploração mineral.
Em 2021, a Folha de S.Paulo noticiou que “o Jornal da Cidade Online, veículo líder em visualizações no campo bolsonarista, sofreu derrota em disputa judicial com o Google, dono do YouTube” e, por determinação do Tribunal Superior Eleitoral em agosto (2021), o YouTube e outras plataformas suspenderam repasses de pagamento ao JCO, ao Terça Livre e ao canal do jornalista Oswaldo Eustáquio, que supostamente estariam espalhando fake news sobre fraudes em urnas eletrônicas.
O Comprova já desmentiu outras postagens do site JCO.
Por que investigamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizam nas redes sociais sobre pandemia, políticas públicas do governo federal e peças que questionam o resultado das eleições presidenciais. Publicações como esta verificada são prejudiciais à democracia porque incentivam as pessoas a não aceitarem o resultado das eleições e a acreditarem que o presidente eleito fez declarações que atentam contra a Constituição e a soberania nacional, sem que isso seja verdade.
Outras checagens sobre o tema: O Comprova já mostrou que é falso que Lula tenha vendido o solo da Amazônia para uma empresa norueguesa, assim como é falso que ele roubou 350 mil toneladas de ouro de Serra Pelada. Também é falso que o petista tenha dito que fecharia igrejas, caso fosse eleito.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta