Conteúdo investigado: Vídeo em que homem afirma que leis brasileiras “praticamente obrigam” que padrastos paguem pensão a filhos de uma mulher com quem eles se relacionam.
Onde foi publicado: TikTok e X.
Conclusão do Comprova: É enganoso o vídeo no qual um homem afirma que as leis brasileiras obrigam que o padrasto pague pensão aos filhos da mulher com quem se relacionou. Ele faz a declaração ao comentar o caso de uma mulher que estava saindo havia dois meses com um homem e que, após descobrir que ela tinha um filho, sumiu.
No vídeo, o homem diz que a culpa pelo “sumiço” são as leis do Brasil, que “praticamente obrigam” qualquer pessoa que se envolva com uma mulher com filhos a pagar pensão. Segundo ele, isso ocorreria após um tempo, se ela acionar o parceiro na Justiça alegando proximidade com a criança.
Nas redes sociais, o autor do vídeo enganoso publica conteúdos sobre relacionamentos e promete “dicas de como ganhar dinheiro na internet”. No vídeo investigado, ele não cita a qual lei estaria se referindo. Buscamos o nome do autor no Cadastro Nacional de Advogados, mas não obtivemos resultados. Ele foi procurado por e-mail e pelo TikTok, mas não respondeu até a publicação deste texto.
O Comprova consultou o Código Civil Brasileiro, que trata do Direito de Família, e entrevistou especialistas no assunto, que foram categóricas: não há lei no Brasil que obrigue o padrasto ou madrasta a pagar pensão para os filhos de uma mulher ou homem com quem se relacionaram pelo simples fato de a relação ter ocorrido.
O que existem são decisões jurisprudenciais que determinam o pagamento de pensão por pais ou mães socioafetivos, ou seja, que se comportam como pai ou mãe de um menor e que têm essa parentalidade socioafetiva reconhecida pela Justiça ou de forma voluntária. Ainda assim, o pagamento de pensão só é determinado por decisão judicial.
Embora a legislação brasileira reconheça, atualmente, a existência de pais e mães socioafetivos, o termo não aparece no atual Código Civil. Em abril, uma comissão de juristas presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), apresentou ao Senado uma proposta de atualização do Código. Este texto, se aprovado, passa a reconhecer expressamente a multiparentalidade socioafetiva, ou seja, a possibilidade de reconhecimento de mais de um vínculo paterno ou materno – e coloca no texto da lei os direitos e deveres de pais e mães socioafetivos. Mas, a atualização ainda não começou a tramitar.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até 12 de julho, as publicações no TikTok e no X acumulavam 246,8 mil visualizações.
Fontes que consultamos: Superior Tribunal de Justiça, Senado Federal e o parecer final da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil e o quadro comparativo entre o texto atual do Código e a proposta de atualização feita pelos juristas. Foram entrevistadas ainda as advogadas Renata Mangueira de Souza, sócia do escritório Gasparini, Nogueira de Lima, Barbosa e Freire Advogados, especializada em processo civil; e Samantha Jorge, que atua em direito de família e sucessões, planejamento patrimonial e sucessório, do Briganti Advogados.
Para localizar o autor do vídeo, buscamos pelo nome completo dela usando a ferramenta CruzaGrafos, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), e o link para venda de um curso online de finanças em nome do mesmo.
No vídeo, o autor trata como “padrasto” qualquer homem que tenha um relacionamento com uma mulher que tem filhos, e atribui a esta pessoa uma suposta obrigação de pagar pensão alimentícia à criança ou adolescente fruto de outro relacionamento da companheira. Mas há uma diferença jurídica entre os termos. O padrasto ou a madrasta é a pessoa que se casa ou estabelece uma união estável com alguém que tem filhos. Isso não significa que esse padrasto ou madrasta será responsável pelo sustento dos enteados, nem que assumirá um papel paterno ou materno com a criança ou adolescente. Essa obrigação deve continuar sendo exercida pelos pais biológicos, mesmo separados.
Já o pai ou mãe socioafetivo é aquele que, em uma relação com alguém com filhos, assume uma figura paterna ou materna com a criança ou adolescente, mesmo sem que sejam filhos biológicos. Para isso, é preciso que haja um reconhecimento de parentalidade socioafetiva, por meio judicial – através de uma ação, com apresentação de provas, oitiva de testemunhas, direito ao contraditório etc. – ou de forma voluntária. É necessário haver consentimento do responsável legal pelo menor.
“Não tem previsão na legislação de que um padrasto é obrigado a pagar pensão para o enteado. Eu acho que ele [o autor do vídeo] está confundindo o padrasto com o pai socioafetivo”, afirma a advogada Samantha Jorge. “A diferença é que o pai socioafetivo reconhece que aquela criança é filha dele. Com esse reconhecimento voluntário, ele passa a ter responsabilidades com educação, alimentação, saúde, religião e até questões de pensão, herança”, diz.
Ela afirma que, quando não há reconhecimento voluntário, a mãe da criança pode entrar com uma ação na justiça alegando que a criança criou um vínculo, mas a pessoa pode discordar e afirmar que o vínculo não existiu, e a questão pode ser discutida judicialmente.
Se, por um lado, um padrasto ou madrasta não tem obrigação legal de sustentar os enteados, o pai ou mãe socioafetivo passam a ter essa responsabilidade no momento em que essa parentalidade socioafetiva é reconhecida. E isso pode incluir o pagamento de pensão, se houver necessidade e se a pessoa tiver condições. Quem determina o valor é um juiz, que faz o cálculo.
A também advogada Renata Mangueira de Souza reitera a fala da colega. Para ser obrigado a pagar pensão, diz ela, a pessoa teria de agir de forma que aquele relacionamento fosse duradouro. “[Seria preciso que o relacionamento] tivesse uma aparência de família, que você tivesse uma aparência de pai ou mãe daquele menor, que aquele menor te reconhecesse assim”, diz. “Não é um simples namoro.”
Ela ressalta que a lei não obriga um pagamento de pensão, a menos que o menor tenha sido reconhecido como filho, biológico ou socioafetivo. “A lei existe no sentido de que: se você assumiu uma responsabilidade como se pai fosse ou mãe fosse, e aquele adolescente ou criança te reconhece assim, e se for necessário, se o representante legal entrar com uma ação e ficar comprovado que você agiu como genitor, sim, você pode precisar pagar”, completa.
Consultado, o STJ disse não ter precedentes sobre pagamento de alimentos ao filho socioafetivo especificamente do Superior Tribunal de Justiça, mas há decisões neste sentido em Tribunais de Justiça dos Estados. Caso a proposta de atualização do Código Civil seja aprovada pelo Senado, a obrigatoriedade de prestação de alimentos deixa de ser apenas dos pais biológicos e se estende aos pais socioafetivos, deixando decisões assim do campo da jurisprudência para ser reconhecido pela própria lei.
Hoje, o pagamento de pensão alimentícia por pai ou mãe socioafetiva ocorre por meio de decisões jurisprudenciais. No entanto, existe uma proposta de atualização do Código Civil aguardando para tramitar no Senado que, se aprovada, deverá formalizar essa responsabilidade.
Entre as principais mudanças em relação ao direito da família está o reconhecimento da socioafetividade, “quando a relação é baseada no afeto e não no vínculo sanguíneo”. O texto também reconhece a multiparentalidade, ou seja, a possibilidade do indivíduo ter mais de um vínculo materno ou paterno. O artigo 1.696, por exemplo, que trata do direito à prestação de alimentos, passaria a incluir na obrigatoriedade, além dos pais biológicos, também os socioafetivos.
Por que o Comprova investigou essa publicação: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: O Comprova já checou outros conteúdos que desinformavam sobre a legislação brasileira: mostrou que uma nota técnica anulada do Ministério da Saúde não muda lei sobre aborto; que a norma que instituiu pau de arara como manifestação cultural não permite retorno do uso dos veículos; e que um projeto de lei não proibia versículos bíblicos nas redes sociais.
Investigado por: Correio Braziliense e Estadão
Texto verificado por: Folha, Imirante.com e A Gazeta
O Projeto Comprova é uma iniciativa colaborativa e sem fins lucrativos liderada e mantida pela Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e que reúne jornalistas de 42 veículos de comunicação brasileiros para descobrir, investigar e desmascarar conteúdos suspeitos sobre políticas públicas, eleições, saúde e mudanças climáticas que foram compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens. A Gazeta faz parte dessa aliança.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta