Divindade que simboliza as águas e uma das figuras de maior representatividade nas religiões de matriz africana, a imagem de Iemanjá sofreu alterações ao longo dos anos, à medida que o entendimento e o espaço para as discussões foram crescendo. Uma das principais mudanças foi o tom de pele: a imagem da "Rainha do Mar" ficou popularizada como branca, por conta do sincretismo religioso — ou seja, a união e reinterpretação de elementos de religiões diferentes, para maior aceitação. De uns anos para cá, entretanto, isso mudou. É cada vez mais comum ver Iemanjá representada como negra.
Essa mudança afetou um dos principais monumentos do Espírito Santo: a estátua de Iemanjá, que fica no primeiro píer da Orla de Camburi, em Vitória. Inaugurada em 1988, ela teve a pele embranquecida em relação ao projeto original. "Naquela época, encontrei fotos históricas de uma imagem que veio para cá por um pintor português católico, com as cores de Nossa Senhora dos Navegantes. Disseram que em todos os templos a cor era aquela, mas eu discordei. Eu disse que viajei para vários lugares, e que ela tinha o rosto coberto, como a maioria das entidades, e era mais escura. Mas na época havia um presidente de associação com pai político e prevaleceram as cores do português, com ela branca”, conta o artista Ioannis Zavoudakis.
O professor Aparecido José Cirilo, do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que possui estudos nas áreas de cultura, arte pública e monumentos, explicou que essa mudança na tonalidade da pele da estátua aconteceu principalmente por conta do contexto social e político da época em que o monumento foi projetado.
"Foi uma encomenda que o Ioannis recebeu do prefeito da época para fazer um monumento em homenagem às religiões afro-brasileiras, representar essa diversidade religiosa do Espírito Santo, e a Iemanjá foi a imagem escolhida pelo Ioannis, até na perspectiva do sincretismo da religião brasileira. O que ocorre é que a gente está falando da década de 80 no Brasil e essas questões étnico-raciais ainda são muito pouco conversadas no país. Existe toda uma perspectiva que a gente não pode ignorar da imagem de Iemanjá com Nossa Senhora dos Navegantes, essa entidade do cristianismo que protege os homens do mar", descreveu o professor.
Cirilo explicou que essa mistura das religiões, somadas ao contexto da época, fez com que houvesse uma resistência de um grupo político forte no Estado. Com isso, a representação escolhida foi a mais próxima de Nossa Senhora dos Navegantes, ou seja, com os cabelos lisos, pele branca e traços físicos afinados. O professor detalhou, ainda, que essa imagem da "Rainha do Mar" embranquecida era algo adotado em todo o país, e não apenas no Estado.
"O Ioannis então, a muito contragosto, finaliza a imagem com o cabelo mais liso — falamos da cor da pele, mas o próprio cabelo foi modificado e ganhou, depois, um contorno mais cacheado. Ele finaliza a imagem atendendo a essa resistência de parte do poder público para que a estátua assumisse aquilo para o qual ela foi pensada, para representar as religiões de matriz africana no Espírito Santo, mas com um aspecto muito mais de Nossa Senhora dos Navegantes do que propriamente de Iemanjá. É uma iconografia que estava nacionalmente associada à Iemanjá", reiterou o professor.
Nos processos de restauração que seguiram à inauguração do monumento, segundo Cirilo, Ioannis começou, aos poucos, a trazer a estátua de Iemanjá para mais próximo da representação afro-brasileira original, tendo também participação dos próprios movimentos étnico-raciais do Espírito Santo.
Em 2017, a estátua de Iemanjá passou por um processo de adequação. A "Rainha do Mar" ganhou novas cores na pele, no manto, na coroa e nos cabelos. Segundo a gestão municipal da época, as mudanças atenderam às demandas oriundas das religiões de matrizes africanas e do Conselho Municipal do Negro (Conegro), além de estabelecer o cumprimento de metas do Plano Municipal de Cultura que diziam respeito à preservação do patrimônio e à valorização da diversidade cultural.
Para a execução do trabalho, durante aproximadamente um ano, a prefeitura realizou reuniões com os movimentos sociais para dar início ao projeto de reforma da estátua de Iemanjá. Durante os encontros, foi feito um amplo debate com o Conselho Municipal do Negro (Conegro) e as religiões de matriz africana para definir os ajustes necessários, inclusive as cores da imagem.
"Na nossa fé, não temos a imagem em si. Cultuamos a natureza, a pedra, o mar, a criação, por isso a simbologia da cor está ligada aos elementos. O azul do mar, a prata da prata, o branco do sal. É divino, não é branco nem preto. Só que pela lógica da ancestralidade, pela origem africana, o certo é representar Iemanjá como negra, como mulher preta", afirmou Edinéa Cabral da Silva, a Mãe Néia, importante líder religiosa do Espírito Santo. Ela foi pioneira na celebração do Dia de Iemanjá em Camburi, em 1983, antes mesmo da estátua ser construída, e participou de todos os processos e discussões sobre o monumento ao longo dos anos.
Uma das principais reivindicações de Mãe Néia foi em relação à cor da coroa, que inicialmente era dourada — o que não condiz com a simbologia de Iemanjá, que usa prata.
"Briguei feio para mudarem a cor da coroa, porque a coroa de Iemanjá é prata. Na nossa fé, o amarelo e o ouro têm relação com Oxum, são entidades diferentes. Pedi para mudar. Em 1999, houve o pedido para pintar a estátua com a pele negra, mas fizeram de uma forma que ficou feia, não gostei. Pintaram de preto, mas não representava uma negra. Teve depredação muitas vezes, arrancavam as mãos dela. Mas nós resistimos", contou.
Mãe Néia viveu o preconceito com o candomblé na pele por muitos anos, mas sempre participou ativamente das discussões políticas junto às lideranças, para que as religiões de matriz africana fossem respeitadas e democratizadas. O terreiro da divindade Kukuetu, também conhecido como Alafin de Iemanjá ou barracão de Mãe Néia, em Bairro de Fátima, foi fundado em 1983 e até hoje é zelado por ela. Além da manutenção das tradições de raiz Angola Muxicongo, mãe Néia é conhecida pelo anual Balaio de Iemanjá na praia de Camburi a cada 2 de fevereiro.
"Antigamente, não acreditavam que negro tivesse alma. Era tido como bicho do mal, porque acreditava na natureza. Então uniram nossas crenças com as imagens católica. Assim como pintam Jesus de branco, sendo que pela lógica da história não seria branco, colocaram Iemanjá com as feições europeias, mais parecida com uma santa católica. Assim foi ganhando aceitação", explicou.
Autor do monumento, o artista Ioannis Zavoudakis, grego radicado no Espírito Santo, confirmou que o tom de pele embranquecido da imagem de Iemanjá foi uma exigência política da época, mas que, depois de inaugurada, ele lutou para que o projeto original fosse respeitado. Além disso, o artista também contou que enfrentou resistência mesmo após as alterações feitas nos processos de restauração.
"Foi uma exigência daquela época, eles não iriam aceitá-la com a pele negra. Depois de inaugurada, comecei uma briga para começar a pintar da cor que eu queria. Que eu queria não, que seria o certo, pois a cor dela é preta mesmo. Finalmente eu consegui, mas, depois que eu consegui, quebraram as mãos. Eu tinha um molde com as mãos e consertei. Falei que se eles quebrassem as mãos, eu consertaria de novo, toda vez. Depois, nos processos de restauração, não participei mais, mas finalmente voltaram ao projeto original", disse.
Apesar das dificuldades enfrentadas durante a elaboração e execução do projeto, Ioannis se diz grato pela oportunidade de ter trazido à tona um marco importante do passado e das religiões afro-brasileiras. Ele ainda completou, dizendo que, após os restauros e a pintura respeitando o projeto dele, a estátua está linda.
"A estátua está linda, muito linda, eu não posso reclamar. A história é um rolo compressor que não tem marcha-ré, não pode se reescrever. Agradeço porque penso que estou resgatando algo importantíssimo do passado. Temos que respeitar a ideia dos outros e sermos úteis, quando paramos de ser úteis, papai do céu manda reciclar", concluiu, se divertindo.
Em 1988, a estátua foi encomendada pelo prefeito de Vitória, na época, Hermes Laranja. O objetivo era homenagear os praticantes dos cultos afro-brasileiros do Estado. O monumento tem 3,60 m de altura, além da base.
O píer, com largura variando entre 4,70 metros e 4,10 metros, quando inaugurado, tinha como objetivo atenuar problemas de erosão na praia de Camburi, causados por mudança no regime das correntes, considerada como provável conseqüência de aterros realizados no Porto de Tubarão.
Em 1988, o píer foi institucionalizado como ponto turístico, com a inauguração do Monumento a Iemanjá. Segundo registra Willis de Faria, em “Catálogo dos Monumentos Históricos e Culturais da Capital”, o monumento é uma homenagem às tradições afro-brasileiras. A “Rainha do Mar” apresenta-se de corpo inteiro e mãos abertas, com suas vestes na cor azul celestial.
O monumento, em concreto armado, foi concebido por Ioannis Zavoudakis, artista de nacionalidade grega, radicado no Espírito Santo. Traz como inscrição a frase “A luz do sol ilumina a terra, a luz de Deus os que tem fé".
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