Construída em 1535 com a chegada dos portugueses ao Espírito Santo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário, localizada no Sítio Histórico da Prainha, em Vila Velha, é a mais antiga do Estado e divide o título de mais antiga em funcionamento no Brasil com a Igreja de São Cosme e Damião em Igarassu, Pernambuco. Reaberta para visitação, a construção aparentemente simples carrega um significado que vai além da importância religiosa, do espaço físico e da idade avançada. Foi ela que ditou o traço do desenho urbano da vila que, anos depois, tornou-se Vila Velha.
Durante o século XVI, quando o donatário português Vasco Fernandes Coutinho pisou em terras capixabas pela primeira vez, países europeus disputavam a colonização de territórios na África, na Ásia e na América. A conquista superava o aspecto territorial, significando o alcance de mercados e também de culturas.
A primeira providência a ser tomada pelos colonizadores ao dominar novas terras era a construção de um marco religioso que poderia ser uma capela ou apenas uma cruz, explica o jornalista e autor do livro "A Igreja de Nossa Senhora do Rosário da Prainha do Espírito Santo", de 2018, José Antonio Martinuzzo.
"Qual a função de uma igreja ou uma cruz? O templo era visto como um marco entre o antes caótico e profano e o depois civilizado. A capela seria um sinal do cosmo divino atuando em um território que antes era caótico e profano", disse. Nesse contexto, foi erguida, inicialmente, uma capela na Prainha. Em 1551, com a chegada dos jesuítas, o espaço ganhou uma estrutura maior. Para Martinuzzo, a construção é a "joia capixaba", por ser "simples, mas carregar muita história".
Com o tempo, a construção tornou-se, então, um referencial para o desenvolvimento urbano da vila. "É a igrejinha que vai dar a pauta de Vila Velha. As pessoas vão construir as suas casas olhando para a igreja. Primeiro, duas fileiras de casas e a formação da praça como está lá hoje. Depois, as construções se sucedem tendo como referência a igreja", contou o historiador Estilaque Ferreira dos Santos.
O desenvolvimento, no entanto, não se deu de forma orgânica e impensada, conforme aponta a professora de Arquitetura e Urbanismo da Ufes e especialista em restauração e conservação de monumentos e sítios históricos, Luciene Pessotti. Seguia um modelo urbano de ocupação territorial oriundo de uma prática dos portugueses, na qual Vasco Coutinho tinha experiência, "uma vez que trabalhava havia mais de 20 anos para o rei Dom Manoel em fundações de vilas como estratégias de dominação".
O modelo usado, explica a professora, era regular e formal, fundado nas tradições, mas com uma influência científica do Renascimento. Apresentava um desenho em quadra, geométrico, com referência da cultura clássica. A partir da figura da cruz, "que dá os padrões geométricos de quadrado e retângulo", o traçado (desenho urbano) da Prainha foi estruturado.
"A igreja foi o que a gente chama de matriz geradora do padrão urbano, em um terreno regular, com ruas quase perpendiculares umas às outras, diferentemente do que se vê no Sítio Histórico de Vitória, por exemplo, em que os traços se adequam as curvas de nível", detalhou.
A matriz projetada pela igreja só sofreu alterações mais de cem anos depois, no início do século XX, quando Antônio Athayde, então prefeito do município, propôs um "novo traçado" para ampliar a urbanização da cidade. Entre as mudanças, estavam as duas praças próximas ao templo, a da Bandeira e a Otávio Araújo. Mesmo com as alterações, pondera Pessotti, os traços originais foram respeitados.
Outra característica alterada foi a proximidade entre a igrejinha e o mar. Quando foi construída, a edificação tinha a função de "acolher o espaço urbano" bem na costa, em frente à principal "via de comunicação" com o mundo, o mar. Com os aterramentos que começaram a ser feitos em 1910 até a década de 1990, no entanto, já não é possível imaginar o cenário.
Até o início do século XX, no entanto, a cidade canela-verde era uma vila pacata com poucos moradores. Durante centenas de anos, a vida na vila se resumia à pesca e às concentrações de moradores nas romarias que atraíam fiéis ao Convento da Penha, construído em meados de 1570.
O papel da Igreja Nossa Senhora do Rosário ia muito além da função religiosa nos primeiros anos da colonização, relembra Gether Lima, membro da Casa da Memória de Vila Velha e morador da Prainha há 62 anos. "Servia de cartório e tinha uma função de comunicador. O badalar dos sinos é que informava as novidades. As igrejas tinham um papel fundamental no desenvolvimento e, por isso, as pessoas procuravam ficar perto delas."
Com a chegada do bonde elétrico, em 1912 e, dez anos mais tarde, com a inauguração da Ponte Florentino Avidos (que faz a ligação com Vitória), teve início o "boom" populacional em Vila Velha. O historiador Estilaque Ferreira destaca que um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento da parte que hoje é conhecida como Praia da Costa e Itaparica foi a mudança na imagem das praias, que passaram de um "grande esgoto a céu aberto" para uma opção de lazer.
"Em Vitória e Vila Velha, os escravos jogavam os dejetos na praia. Não se associava praia a esporte, lazer e bem-estar até século XX, sobretudo nas décadas de 20, 30, quando foi se criando a ideia de que era um lugar aprazível", relatou. Atraindo o interesse da elite vitoriense – uma vez que a Capital era vista como uma cidade de manguezais e costumes que atraíam doenças – as praias da cidade vizinha começaram a ser visitadas durante os verões e, aos poucos, a classe mais rica passou a comprar terrenos nos locais.
A história do desenvolvimento urbano de Vila Velha, portanto, se desenvolve em cima desses dois pilares: religião e lazer, finaliza o historiador.
Desde o dia 27 de janeiro, a Igreja Nossa Senhora do Rosário foi reaberta para o público. As visitas guiadas podem ser feitas de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h. Aos finais de semana, as missas ocorrem aos sábado, às 17h, e aos domingos, às 7h, 9h, 11h e 19h. É obrigatório o uso de máscara no templo durante o período da pandemia do novo coronavírus.
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