Houve um tempo em que "A Marselhesa", hino nacional da França, era entoado em ruas e escolas do Espírito Santo. Um dos principais símbolos da liberdade, inspirado pela Revolução Francesa, a marcha era apenas um dos costumes "importados" dos franceses, adotados principalmente pela elite capixaba. No campo político, a influência dos ideais franceses impulsionou a popularização do movimento republicano no Estado.
Os costumes não eram exclusivos dos capixabas. No final do século XIX e início do século XX, o país europeu era exemplo para a adoção de costumes em todo o mundo, inclusive no Brasil. Além da influência no campo político, com a propagação do pensamento republicano, o francês era considerada a principal língua diplomática, muitas vezes ensinado nas escolas. "A língua, a moda, as vestimentas, as cantigas populares, tudo tinha a influência francesa", relata o historiador Fernando Achiamé.
Muito se dava por uma "elite afrancesada", que passava férias e períodos de estudo na França e depois voltava para o Brasil. "A influência norte-americana no Brasil é uma coisa posterior a 1930, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, em 1945. Antes disso, porém, a elite brasileira é extremamente afrancesada. As pessoas sabiam francês, estudavam nas escolas, era a segunda língua que se ensinava, tentava-se um cardápio francês, a moda, as lojas do Estado vendiam perfumaria", pontua o historiador Estilaque Ferreira dos Santos.
Especialmente no plano político, os ideais franceses eram "palpáveis". A Revolução Francesa, que havia marcado o final do século anterior, influenciou a independência do Brasil, ainda em 1822, e posteriormente na popularização do pensamento republicano, que culminou na proclamação da República, em 1889.
"A Revolução Francesa teve uma repercussão mundial, foi de longe o acontecimento, da era moderna, mais importante antes do iluminismo. A repercussão que a Revolução Francesa teve no mundo foi uma coisa extraordinária, inclusive no Brasil. A independência, em 1822, tem tudo a ver com a revolução francesa, é ela que coloca o mundo no caminho da modernidade", aponta Santos.
A Marselhesa, então, torna-se o principal símbolo da liberdade em todo o mundo. "Obviamente, a repercussão (da Revolução Francesa) foi muito associada ao hino que foi identificado pelas pessoas como o hino da liberdade, da ressurreição e redenção dos povos", explica.
A independência, no entanto, não resultou em uma república, e sim na monarquia. Anos mais tarde, a República foi proclamada. No Espírito Santo, o principal centro dos movimentos republicanos era no município de Cachoeiro de Itapemirim. Por aqui, nomes como o de Afonso Cláudio e de Muniz Freire, que não era republicano, mas simpatizava com o movimento, já começavam a questionar o modelo da monarquia. Para deixar claro que se opunham, negavam-se a usar os símbolos monarquistas e abraçavam os símbolos ligados à liberdade e à autonomia, como os franceses.
"Por volta de 1870, começou a se articular no Brasil e no Espírito Santo o movimento republicano. Esse movimento começou a reivindicar a liberdade contra a monarquia que vigorava no país. E começa, também, a retomar as ideias da revolução francesa, não com o sentido radical, mas no sentido mais moderado que, mesmo assim, recuperava alguns dos símbolos da revolução", aponta.
Ainda em 4 de março de 1887, um artigo publicado no jornal A Província do Espírito-Santo referia-se ao hino francês como o hino da liberdade. A carta, enviada de Paris ao Espírito Santo, dizia: "Os hinos de todos os países são dignos de respeito porque pelo menos representam um signo sagrado, a pátria. A Marselhesa, porém, nunca será igualada porque ela tem em si uma coisa admirável de representar não um povo, mas todos os povos, pois por toda parte onde a liberdade surge é ao som desse canto glorioso que é o grito da ressurreição e redenção dos povos."
Quando o objetivo foi alcançado, com a proclamação da República no dia 15 de novembro de 1889, o próprio Afonso Cláudio deixou registrado no livro "História da propaganda republicana no Espírito Santo" como foram as festas de comemoração em solo capixaba.
"Viva a Republica! No dia 16 às 6 horas da manhã, depois de afixada na porta da estação telegráfica a circular que distribuímos em boletins na qual dávamos conta da proclamação da república e da constituição de seu governo imediatamente a banda Eturpe Cachoeirense, reunida na casa do cidadão Joao Loyola, proprietário e gerente d'O Cachoeirense (jornal da época) e um dos que muito trabalharam em proveito da causa republicana, tendo a frente esse cidadão e acompanhado de outros cidadãos, saiu a percorrer as ruas da vila entoando a Marselhesa ao espocar de inúmeros foguetes e entusiásticos gritos de viva! Ao meio-dia recolheu-se a banda e às 13h30, reunida pela segunda vez, foi até a estação da ferrovia esperar o presidente do clube. A chegada do trem, que vinha enfeitado com flores e bandeiras vermelhas soou a Marselhesa e gritos de vivas!", escreveu.
"A prova de como a Marselhesa foi adotada como símbolo dessa luta vitoriosa deles contra a monarquia. A República é proclamada em 1889 e não tinha símbolos próprios, precisava se contrapor aos símbolos da monarquia. O hino da monarquia era o hino nacional. No começo, como não havia nada para contrapor, eles adotavam a marselhesa. A bandeira no trem era vermelha, não verde e amarela, eles queriam criar novos símbolos que contrapusessem o Brasil da era monarquista", pontua Estilaque Santos.
O hino era entoado também em ocasiões oficiais. "Há relatos de historiadores e jornais que existia o costume de cantar a Marselhesa em ocasiões especiais, como quando foi a posse do primeiro governador no Estado", recorda Achiamé. Afonso Cláudio, um dos principais nomes do movimento republicano no Estado, foi o primeiro governador do Espírito Santo entre os anos de 1889 e 1890.
O cientista político João Gualberto Vasconcellos ressalta que, quando foi instalada, a República precisou ser discutida entre as lideranças. "Houve uma grande discussão aqui entre as nossas autoridades republicanas sobre o modelo a ser seguido. Havia os republicanos jacobinos, ligados à república francesa, e havia os ligados à república americana, como Rui Barbosa", compara. Acabou que politicamente se seguiu o modelo norte-americano, mas, simbolicamente, com muita influência francesa.
"Vingou a república americana, tanto que viemos a chamar Estados Unidos do Brasil, com Estados federados. E se deve muito ao fato das oligarquias regionais quererem liberdade, porque o governo imperial era muito centralizador", afirma Vasconcellos.
Muitos anos depois, ainda há registros da influência. Capixabas que se lembram de aprender francês na escola já no século XX e um apelo, registrado em jornais, por um nacionalismo que deixasse de lado o entusiasmo com a França. Em outro jornal, desta vez o Diário da Manhã que circulava em 1933, ainda há menção à Marselhesa.
"Todo mundo é nacionalista. O alemão, o francês, o inglês, o italiano. Nacionalistas da gema, menos nós, os brasileiros", começa o texto Abílio de Carvalho.
O escritor se referia a uma letra alternativa ao hino do Espírito Santo, escrita por Ciro Vieira da Cunha, que acabou não sendo aceita. "Naquela altura, o hino do Estado não era muito popular, não era muito conhecido, como até hoje não é, e o que eles inventaram? Tinha um jornalista muito famoso naquela época chamo Ciro Vieira da Cunha, ele escreveu uma letra para substituir a letra do Pessanha Póvoa, mas acabou não aceita."
E a influência não se restringe ao hino. Antes de o Espírito Santo ter uma bandeira oficial, com a frase "trabalha e confia", escolhida por Jerônimo Monteiro em 1908, havia outra, extraoficial. Eram apenas duas cores: vermelho e azul, inspirada na bandeira da França que, além dessas duas cores, conta também com uma faixa branca.
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