Muito se tem falado no trabalho semanal por apenas quatro dias, folgando nos outros três. Com alguns países pioneiros, o modelo vem se tornando uma tendência global. Parece tentador ampliar o fim de semana, substituindo o “sextou” por “quintou”.
Alguns países já incorporaram esse regime em suas legislações, como os Emirados Árabes Unidos, desde o início de 2022, ou mais recentemente o Chile que, optando por uma progressão paulatina, ainda mantém uma carga semanal bastante elevada (de 45 horas semanais, reduzirá para 40 em cinco anos, podendo ser feita em quatro dias, ou seja, 10 horas por dia). Bélgica, Islândia e Escócia seguem com modelos semelhantes.
Na última semana, após um teste realizado no Reino Unido, a organização sem fins lucrativos 4 Day Week Global anunciou sua vinda ao Brasil, promovendo um evento para empresas nacionais adotarem o experimento por um período, algo que ocorrerá entre junho e dezembro. Segundo o programa, a ideia é seguir o modelo 100-80-100, ou seja, 100% do salário a 80% do trabalho, mas com 100% de produtividade.
A proposta é tentadora, afinal, quem não gostaria de ter três dias inteiros de descanso. E, sob essa ótica, a vantagem é imensa. Mas será que essa moda vai ser benéfica para o trabalhador?
Um autêntico advogado responderia um sonoro “depende”, e a resposta não poderia estar mais acertada, especialmente pela conotação imprecisa. Como um analista das reformas trabalhistas, eu não poderia ver esse hype sem algum ceticismo. Vamos lá:
Primeiro porque, lembrando das lições de Friedman, não existe almoço grátis. Todas as mudanças paradigmáticas na história das relações de trabalho, mesmo as que representaram grandes avanços, vieram com algum custo. Isso sem falar daquelas que, travestidas de avanço, trouxeram grave precarização e redução do bem-estar do empregado.
Como exemplo, lembremo-nos apenas de duas: primeiro a criação do 13º salário, em 1962 por João Goulart. Desde JK, na esteira de um crescimento econômico pautado na industrialização com incentivos, o mercado precisava desovar seus novos produtos, boa parte linha branca. Era preciso aumentar o consumo das famílias. Assim, ao invés de dividir o salário anual do trabalhador em 12 parcelas, elasteceu-se para 13, sendo duas em dezembro, para criar um aparente excedente destinado às compras de Natal (genial, não?). O intento foi beneficiar a indústria e o lojista. Jamais houve um verdadeiro acréscimo na remuneração do trabalhador.
O segundo exemplo foi a criação do FGTS por Roberto Campos, em 1966. Outra parcela tida como um “plus” salarial, nada mais é que um empréstimo compulsório que o trabalhador faz ao governo, devolvido apenas se implementadas situações específicas, como a dispensa sem justa causa, e com rendimentos pífios. O governo, por sua vez, utilizava o crédito para construção de casas populares, que vendia a juros superiores aos rendimentos do fundo. Ganhava duas vezes. Ah, e o motivo de sua criação? Acabar com a estabilidade no emprego. Simples assim.
Até mesmo a necessária, porém, tardia abolição da escravatura, o maior ranço de nossa história, não surgiu devido à benevolência dos administradores e empresários da época. Segundo a tese da exaustão do modelo econômico, muito bem delineada por Eric Williams, a escravidão não era mais um modelo lucrativo. Era muito mais caro comprar e manter escravos do que pagar salários pífios a trabalhadores livres ociosos. E note que nossa lei áurea não veio acompanhada de nenhuma política pública de inclusão e inserção social dessa classe tão oprimida.
Pois bem, essa nova tendência de reduzir a semana útil de cinco para quatro dias não vem do nada. Algo está acontecendo no modelo produtivo mundial e não é pouca coisa. Em decorrência da sofisticação das formas de prestação de serviços atuais, muito diversas daquela contratação do operário do chão de fábrica, há um esgotamento, até uma incompatibilidade, do modelo remuneratório que acompanha o trabalho livre desde o surgimento da economia: o salário por unidade de tempo.
Na época da revolução industrial, quem ditava o ritmo e a produtividade era a fábrica. Seus processos, a exemplo de Chaplin em "Tempos Modernos", faziam do trabalhador uma máquina. Ele devia seguir exatamente o que a linha de produção mandava. Não podia fazer nem a mais, nem a menos, nem mais rápido, nem mais devagar. Não havia espaço para as capacidades individuais do funcionário. Por tal razão, era razoável e lógica a remuneração por hora trabalhada (ou dia, quinzena ou mês, enfim). Foi o paradigma adotado por grandes pensadores, do pai da administração, Taylor, às análises econômicas e sociais de Smith e Marx.
Nos dias de hoje, grande parte das profissões depende das qualidades individuais do trabalhador. Assim, mais razoável e lógico remunerar lhe conforme sua produção. É por isso que um motofretista faz entregas pilotando sua moto como se estivesse na Moto GP, quanto mais entregas, mais rendimentos. E pode trabalhar quando quiser, a preocupação com a agilidade é mais dele que de seu contratante. No modelo do parágrafo anterior, se o trabalhador puder não fazer nada até dar o horário, melhor, não se cansa e recebe a mesma coisa.
Quanto aos empregados celetistas, de início podemos afastar a redução de cinco para quatro dias nos empregos que dependem de horários de atendimento. Recepcionistas, funcionários do comércio, vigilantes, plantonistas etc. têm sua remuneração pautada na hora de trabalho (ainda que recebam também prêmios ou comissões). Esses devem permanecer nos horários contratados, não tem jeito. Se retirar um dia de trabalho, fatalmente vai reduzir a produtividade e empresa nenhuma quer isso.
Quanto aos trabalhos intelectuais pautados no resultado individual, esses sim podem ter a mudança. Ora, se a ideia é manter a produtividade, é muito melhor ao empresário que o empregado atinja suas metas em menos tempo. Um dia a menos de escritório aberto na semana, mantendo a mesma produtividade, gera economia em limpeza, energia, cafezinho etc.
Ah, então é “win-win”, a empresa economiza e o trabalhador descansa mais? Depende. Certamente haverá casos em que o trabalhador, e isso não é nenhuma novidade, vai levar trabalho para casa (que pode ocupá-lo por todos os três dias de descanso, não se engane), bem como pode haver uma pressão tamanha durante os quatro dias úteis, que o empregado não vai aguentar (casos de assédio moral, “burnout” e afins devem pipocar). No mínimo, os trabalhadores menos ágeis terão seus empregos em risco.
Certo é que as empresas e trabalhadores, caso achem possível em suas áreas, devem testar o modelo, construindo um regime devidamente acordado (preferencialmente via negociação) que consiga atender às necessidades da empresa sem prejudicar funcionários, e vice-versa. Há muito espaço para evolução, mas também deve haver atenção às profundas mudanças que vêm acontecendo no globo. Vai dar certo? Depende.
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