A recente decisão judicial prolatada em 20 de julho de 2023 pela juíza do Espírito Santo Gisele Souza de Oliveira, no âmbito do processo que tratava das violentas agressões de cunho racista sofridas por Gustavo Forde, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, praticadas por Antonio Jacimar Pedroni, Kennedi Fabrício dos Santos, ambos condenados, e por Wagner Rodrigues, para quem o processo se encontra suspenso até que seja localizado, representa um importante indicativo de que a forte estrutura sobre a qual se sustenta o racismo começa a sofrer abalos, fissuras que poderão transformar aquilo que parecia uma utopia em uma possibilidade concreta e objetiva.
O racismo pode e deve acabar, e precisa ser enfrentado com coragem, para que nossa humanidade encontre espaço para se desenvolver de forma plena e a dignidade humana seja um valor respeitado sobre o qual não se contemporize e não se transija jamais.
Racismo é crime e assim deve ser tratado. Não se pode tergiversar sobre ele e nem perpetuá-lo por inércia judicial ou condescendência cultural. A cultura que deve prevalecer é a cultura da intolerância com o intolerável e o racismo é intolerável.
É necessário refletir com seriedade e compromisso civilizatório sobre a ideia de que tudo aquilo que foi construído pode ser desconstruído, por mais que seja difícil ou aparentemente impossível. Se o racismo é fruto de uma construção histórica ele pode ser desconstruído.
É necessário transformar o discurso antirracista em prática antirracista, e foi isso que fez com maestria a juíza Gisele Oliveira em uma decisão emblemática, sensível, histórica e magistral.
O intolerável racismo precisa ser objeto de nossos mais radicais compromissos de vida. Ele macula e desabona nossa humanidade, nos tornando menores do que somos e do que podemos ser.
A estratégia argumentativa sustentada em norma que diferenciava injúria racial e racismo serviu para perpetuar uma cultura injusta, permitindo que toda a humanidade continuasse a ser objeto desse tipo de ataque sem que houvesse penalização pela conduta criminosa tipificada como racismo.
O Supremo Tribunal Federal ao deixar assentado, em decisão recente, que a injúria racial é uma espécie de racismo, sendo, portanto, também imprescritível, serviu como baliza para que essa tradição discursiva argumentativa seja desconstituída.
A decisão da magistrada capixaba, histórica por sua ruptura com a tradição argumentativa, se revela uma aula sobre Direitos Humanos e sua necessária proteção universal, tal qual estabeleceu em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A decisão se fundamenta de forma clara e direta em todos os dispositivos normativos nacionais e internacionais, quais sejam, a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância e a própria Constituição Federal, respeitando e destacando a relevância do Sistema Multinível de Proteção dos Direitos Humanos e deixando evidenciada a importância de que magistrados tenham uma formação rigorosa não apenas de cunho dogmático, mas, sobretudo, social e acadêmico.
Necessário registrar que a primorosa peça elaborada por Elisângela Leite Melo, advogada da vítima, que atuou como assistente de acusação no processo, também caminha no mesmo sentido, representando um importante documento a ser utilizado não apenas como peça jurídica a servir de modelo aos juristas, mas, sobretudo, como paradigma a ser ensinado nos cursos de Direito de nosso país.
Importante ainda destacar que tanto a peça elaborada pela advogada quanto a sentença prolatada pela juíza nesse histórico processo refletem a dedicação aos estudos acadêmicos de duas mulheres comprometidas com os Direitos Humanos Fundamentais, em processo de titulação em curso de mestrado.
A esperança é um sentimento possível que vamos tornando realidade na busca por desconstituir o intolerável racismo.
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