Em dezembro de 1998, ao completar 70 anos, Renato Pacheco me disse que iria se afastar da Academia Espírito-santense de Letras, a que ingressara muito novo, e que ajudara a manter edificada por muitos anos, e isso era e não era em virtude de minha eleição a presidente da instituição, com Maria Helena Teixeira como vice.
Era porque acreditava na nossa capacidade de administrar a instituição sem a sua ajuda e não era por não aceitação de nossa escolha, como alguns poderiam inferir. Disse que iria se retirar para ler os “Ensaios” de Montaigne e finalizar algumas obras que havia iniciado; assim o fez e, seis anos mais tarde, em 2004, veio a falecer.
Nesse ínterim, conversávamos por cartas, ou telefone, pois, naquele tempo, ainda não havia a internet. Agora, me encontro na mesma situação. Começo a me afastar de nossa centenária instituição, processo que deve ser concluído ao final do mandato de nossa querida Ester, e quando também chegarei aos 70 anos, idade que, de acordo com a Bíblia, finaliza os nossos dias. Os que têm mais saúde chegam aos oitenta anos; “entretanto, a maior parte dos anos é de labuta e sofrimentos, porquanto a vida passa muito depressa e nós voamos”. (Salmo 90:10).
Na Academia de Letras, convivemos com ‘imortais’ que chegaram aos cem anos, ou quase, como aconteceu com Adelpho Monjardim, Aylton Bermudes e Romullo Sales; nossa presidente fez noventa em janeiro e está cheia de vigor para administrar nossa AEL, em segundo mandato; a decana, Neida Lúcia, completa noventa e quatro, em junho. Portanto, passar dos noventa é comum entre nós, talvez pela contínua atividade cerebral que exercemos com nossas leituras e escritas.
No entanto, há exceções, mortes prematuras, geralmente de acadêmicos vitimados por câncer, como ocorreu com Miguel Marvilla e Jeanne Bilich, ou assassinado, como foi violentamente extirpado da vida o sensível e querido poeta Sérgio Blank. Como não sabemos a nossa hora de partir, resolvi começar a ler os "Ensaios" de Montaigne e comecei pelo “Da amizade”.
Conforme o sábio ensaísta francês, citando Cícero, “a amizade atinge sua irradiação total na maturidade da idade e do espírito”. Para ele, “o que chamamos amigo e amizade não passam de ligações familiares, travadas ao sabor da oportunidade e do interesse e por meio das quais nossas almas se entretêm”.
Na verdadeira amizade, as almas entrosam-se e se confundem em uma única alma, tão unidas uma à outra que não se distinguem, não se lhes percebendo sequer a linha de demarcação. Para ele, ”a amizade assinala o mais alto ponto de perfeição na sociedade”. Observa, ainda, que, em geral, se dá o nome de amizade a sentimentos nascidos da satisfação dos prazeres, das vantagens usufruídas, de associações formadas em vista de interesses públicos ou privados, mas esses sentimentos são menos belos, menos generosos e visam a outros fins. São afeições, que se classificam em quatro categorias, segundo ditadas pela natureza, pela sociedade, pela hospitalidade ou pelas exigências dos sentidos. Não sei como chamaria às “amizades virtuais” dos nossos tempos, mas, com certeza, não as enquadraria no rol das verdadeiras amizades. São tão “fakes” como o mundo que compartilham.
Passamos por quatro fases na vida, infância, juventude, maturidade e velhice. Em cada uma delas, travamos relacionamentos, criamos afeições, travamos vínculos de amizade. Alguns se tornam verdadeiros amigos, da vida toda, mas geralmente a maioria se perde pelos sendeiros da vida.
Nada me restou das amizades da infância; da juventude, a maioria se foi, o último agora foi o Luiz Moulin, com quem partilhava leituras e descobertas; das amizades profissionais, nas escolas por onde atuei, poucas chegaram até os dias atuais; e, dentre as amizades da última fase da vida, sinto, profundamente, a perda da querida Jeanne Bilich, que nos deixou há um ano, com quem partilhei leituras, viagens, sonhos e realidades e uma lacuna imensa.
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