Um dos mais importantes fatores de eficiência do sistema de enfrentamento criminal é a sua legitimação, que importa não apenas agir sempre dentro da lei, mas também distribuir de maneira isonômica tanto a sua atuação protetora quanto a repressora. Não, as polícias, o MP e o Judiciário não estão a serviço exclusivo de 98% de “cidadãos de bem” contra 2% de criminosos. Há condutas que são mais frequentes entre pobres e outras que dificilmente poderiam ser praticadas por quem teve pouca instrução ou não dispõe de capital, mas todas as camadas sociais violam as normas de comportamento.
Crimes como a corrupção e a sonegação não causam menos dano à sociedade que o furto e o roubo, por exemplo, até porque geralmente envolvem quantias muito superiores e refletem em péssima prestação dos serviços públicos. Quem agir conforme o seu direito em determinado momento deve ser resguardado daquele que infringe a lei. Ponto final.
Com mais forte razão, não se pode admitir que haja qualquer discriminação em razão de raça/cor da pele, orientação sexual ou religiosa, nem de qualquer outro tipo. Um sistema que divida a sociedade em cidadãos de 1ª e 2ª categorias está fadado a viver em atrito com a população, cair em descrédito, encontrar resistência em vez de colaboração e, no final, não atingir seus objetivos.
Basta olhar a realidade nos presídios, nos inquéritos policiais ou nos departamentos médicos legais, ou apenas examinar as estatísticas para perceber que a maior parte dos presos, das vítimas de homicídio e de confrontos policiais é composta por homens jovens afrodescendentes de baixa escolaridade etc., em proporção muito superior à sua participação demográfica.
O viés racial é inequívoco, embora afirmar que isso necessariamente implica seleção intencional, discriminação racial proposital é tão precipitado quanto negar preconceitos a partir de dados verdadeiros, mas insuficientes, em sentido oposto. Estes debates vão exigir mais de um artigo, não com a pretensão de dar respostas definitivas, mas de, pelo menos, estabelecer de maneira um pouco mais racional as “perguntas certas”.
Por exemplo, é verdade que o perfil do autor dos homicídios coincide perfeitamente com o de suas vítimas. De fato, se olharmos os inquéritos mais de perto, veremos que o carrasco de ontem é quem agora jaz baleado. Traficantes matam-se uns aos outros e a seus “clientes” com uma frequência irracional que muito prejudica seus próprios negócios.
Isto, contudo, apenas sugere que os pretos e pardos não estão sendo perseguidos por alguma entidade semelhante à Ku Klux Klan, que não se trata de violência por ódio racial consciente. Também nos leva a uma primeira pergunta importante: dado que a vítima e o assassino são jovens, afrodescendentes e pobres, não seria a pobreza, por exemplo, o fator de vulnerabilidade, por exemplo?
Outra indagação que não se pode esquecer: o racismo, aqui, não seria estrutural, diluído na sociedade e, portanto, pouco dependente de escolhas individuais conscientes? Por que ninguém propõe “cancelar o CPF” de quem quase destruiu a Petrobras ou desviou verbas destinadas ao enfrentamento da pandemia de Covid?
Embora a intenção seja provocar o debate, e não encerrá-lo, este artigo precisa caber no espaço editorial. Então fica uma última questão proposta. Grande parte da população considera desnecessário diminuir os índices de homicídios, porque, afinal de contas, quase sempre são criminosos matando outros facínoras. Talvez seja até melhor um bandido a menos.
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Acontece que esse discurso pode ser encontrado tanto nas palavras como no agir de assassinos e assassinados: “não se pode matar um trabalhador, mas a minha vida e a de meus comparsas/rivais não vale nada; matar e morrer faz parte da “profissão”. Um discurso discriminatório pode ser absorvido pelo próprio prejudicado. A sociedade está livre de preconceito e discriminação só porque são replicados por um traficante?
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