É advogado. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP)

Napoleão, o Código Civil e os novos antigos problemas do Direito

Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo passou e ter medo daqueles que simplesmente seguiam as leis de seu país, o que reforçou o discurso de relativização da importância da segurança jurídica

Vitória
Publicado em 14/03/2024 às 01h30

Na coluna anterior, ao tratar do projeto de lei que visa a revisar nosso recente Código Civil, de 2002, falei do nosso desapego às tradições e, especialmente, do primeiro Código Civil do mundo, o Código napoleônico de 21 de março de 1804, que vai aniversariar 220 anos na próxima semana, e ainda segue em vigor regulando a vida dos franceses.

Gostaria, então, de questionar: o que aquele monumento jurídico representou e ainda representa para humanidade? O que significa ter um Código Civil?

A ordem jurídica pré-Revolução Francesa era marcada pela grande quantidade de leis e diferentes paradigmas de Direito.

No sul da França, a referência normativa usada ainda se pautava no Direito Romano, ao passo que o norte do país seguia normas feudais de origem franca e germânica. O casamento e a vida conjugal, por sua vez, eram regulados integralmente pelas normas canônicas, da Igreja Católica Apostólica Romana. Em acréscimo, com o surgimento do absolutismo francês, mais e mais decretos reais, e decisões do parlamento, passaram a regular grande número de questões relevantes do país.

Daí a conhecida declaração de Voltaire, crítica à insegurança jurídica, para quem “um homem que viaja nesse país muda de lei quase tanto quanto troca de cavalos” (Un homme qui voyage dans ce pays change de loi presque autant de fois qu'il change de chevaux de poste).

A multiplicidade de leis permitia que os juízes produzissem as decisões mais variadas possíveis, em conformidade com seus interesses e visões pessoais, configurando enorme impedimento para o desenvolvimento do povo e para a garantia das liberdades, especialmente sob a perspectiva de ordem e racionalidade, buscada – nem sempre com sucesso – pelos revolucionários de 1789.

A ideia de um Código Civil surge, exatamente, a partir da necessidade de combater o arbítrio dos juízes e a insegurança jurídica. Exigir que as decisões judiciais fossem pautadas, não pela vontade dos juízes, mas por uma referência prévia, objetiva e racional, a qual deveria ser obrigatoriamente obedecida.

Foi uma dessas invenções que, como o avião ou o automóvel, mudou o curso da humanidade, tendo sido adotada por diferentes países no século XIX, especialmente na Europa e América Latina.

Primeiro nos territórios sob influência francesa revolucionária, como o oeste da Alemanha, o Norte da atual Itália, Gênova e ainda Bélgica, Luxemburgo e Mônaco, onde o Código ainda se encontra vigente. Nas Américas, o Código foi primeiramente adotada no Haiti e República Dominicana.

Outras localidades, como o Chile e a Lousiana (único estado americano a adotar o “civil law”), encamparam grande parte de seu conteúdo tão cedo quanto em 1825. Outros países adotaram mais tardiamente o Código Civil, com influências dos Códigos germânicos e suíços, tais como o Brasil (1916), Japão, México, Grécia e Peru.

Sob aquele Código original, algumas previsões fundamentais foram estabelecidas: todos os homens são iguais, primogenitura, nobreza hereditária, e privilégios de classe são extintos, o Estado é separado da Igreja, liberdade individual, autonomia contratual e inviolabilidade da propriedade privada são assegurados.

Mas há algo além, e igualmente fundamental, que não estava escrito em nenhum de seus artigos: foi estabelecida a possibilidade de o cidadão compreender a lei e ter a referência de que as futuras decisões dos juízes serão o produto de sua aplicação racional.

A ideia era revolucionária, e continuou tratada com bastante reverência até meados do século XX, como um dos principais fundamentos da liberdade e da proteção do indivíduo contra o arbítrio e a perseguição daqueles que detêm o poder.

Cena do filme Napoelão
Cenas do filme Napoleão, lançado em 2023. Crédito: Reprodução/Trailer

Depois da Segunda Guerra Mundial, todavia, o mundo passou e ter medo daqueles que simplesmente seguiam as leis de seu país, o que reforçou o discurso de relativização da importância da segurança jurídica. Leia-se: um debate sério e ainda em curso.

No Brasil, todavia, fomos com muita “sede ao pote”, e decretamos prematuramente o fim da segurança jurídica. Teóricos surgiram com teorias complexas, as quais “libertariam o juiz dessa prisão normativa”, dando-o liberdade para buscar o justo, o democrático, o iluminismo, não partir do que está escrito, mas a partir de suas convicções pessoais, não raro, rebuscadamente apresentadas. Talvez até mimicando o “Ancien Régime”.

O momento exige que decotemos nossos exageros, em releitura às ideias de 1789 em diante. Afinal, nenhuma sociedade conseguirá prosperar, com liberdade, sem que os agentes de poder tenham seus atos limitados pelo conteúdo prévio da lei, racional e claramente estabelecido.

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.