É advogado. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP)

O X da questão: defesa da democracia e liberdade de expressão

A tecnologia mudou a facilidade com a qual as pessoas podem se exprimir e atingir grande público, sem o filtro editorial dos grandes jornais e empresas de mídia. Não mudou, todavia, as grandes questões relacionadas às liberdades individuais

Vitória
Publicado em 12/09/2024 às 02h00

O tema da liberdade de expressão não é novo. Os meios tecnológicos apenas democratizaram a possibilidade de publicação de opiniões, exacerbando os mesmos grandes temas discutidos há séculos pela humanidade: devemos permitir a livre manifestação de pensamento, ainda que seja crítica, ácida ou quiçá odiosa contra quem detém o poder estabelecido?

Antes de Gutemberg (inventor da imprensa), para ser disseminada, uma ideia dependia da produção manual, lenta e caríssima, de um livro ou manuscrito, com limitadíssimo alcance na sociedade. Depois da imprensa, a tecnologia trouxe relevante impacto: um escritor passou a ter a possibilidade de divulgar suas ideias de modo mais eficiente, com panfletos para o público geral, ou mesmo com a produção de livros, a qual se tornou paulatinamente mais barata e acessível.

A tecnologia de então trouxe um enorme desafio aos governantes, diante da oportunidade ampla de crítica. A resposta foi a censura e o controle da opinião alheia, como forma de defesa do status quo e das instituições vigentes no Ancien Régime.

O pensamento liberal foi o grande responsável por combater a censura e disseminar a liberdade de expressão. Em 1695, a Inglaterra capitalista foi o primeiro país do mundo a abolir a censura, a partir da ideia de que ninguém deve ser proibido de falar e emitir sua opinião, sem prejuízo de, depois da fala, vir a ser responsabilizado por excessos, tais como a calúnia e a difamação.

O movimento ganha mais força com o Iluminismo e a Revolução Francesa de 1789, sempre mantendo a vedação à censura prévia. A declaração dos direitos do homem descreve em seu artigo 11 que “a livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos dessa liberdade nos termos previstos na lei”.

No Brasil, a liberdade demorou um pouco mais a chegar, vigendo até 1808 a proibição na colônia de qualquer atividade de imprensa. Foi apenas Dom João VI em 1821 que proclama a abolição da censura, por decreto. A mesma ideia revolucionária francesa foi depois adotada na primeira constituição nacional de 1824 (art. 179, IV) e pela constituição republicana de 1891 (art. 72, § 12), pela qual se ressaltou a impossibilidade de censura prévia e a responsabilidade (sempre posterior) do indivíduo pelos eventuais abusos na manifestação do pensamento.

A situação muda a partir do golpe de 1930 e da implementação de visões coletivistas, em contraposição à tradição liberal. Daí começam a surgir expressões de conteúdo incerto e indeterminado, como válvula de escape para o controle estatal sobre a liberdade de opinião, em clara inspiração aos modelos fascistas e socialistas da primeira metade do século XX.

A Carta Constitucional de 1937, a despeito de declarar a “liberdade de expressão” em seu artigo 122, n. 15, passou a autorizar a limitação da garantia constitucional com base em conceitos vagos como a “proteção do interesse público”, “bem-estar do povo”, “segurança do Estado” e “moralidade pública” e “bons costumes”. Embora em 1946 a Constituição tenha resgatado a tradição liberal brasileira, após o golpe de 1964 a liberdade de expressão voltou a ser cerceada.

Naquela ocasião, os motivos para se calar os cidadãos, como sói de ocorrer, estavam em cláusulas abertas, tais como a defesa da sociedade e do Estado, das instituições ou, como determinou o artigo 166, § 2º, da Constituição de 1967, “a defesa da democracia”.

Leis
Constituição Federal do Brasil. Crédito: Divulgação/Nova Escola

Curiosamente, sob o argumento de defender as instituições e a democracia, a ditatura brasileira eliminou garantias individuais e calou seus cidadãos, inclusive membros eleitos do parlamento, os quais passaram a ser impedidos de exprimir seu pensamento crítico aos governantes instituídos. Tudo era uma questão, na opinião daqueles que mantinham o poder, de se saber usar a liberdade com “responsabilidade”.

Foi nesse contexto que a Constituição de 1988 teve uma preocupação fundamental, não deixar nenhuma margem para que surja interpretação futura, no sentido de que as pessoas poderiam ser caladas, previamente, sob o fundamento de ser necessária a defesa das instituições ou mesmo da democracia.

E foi além: garantiu o direito de nossos representantes eleitos – no exercício de seu ofício – se manifestarem da forma mais obtusa possível, exprimindo opiniões que eventualmente possam ser odiosas, contra os bons costumes ou mesmo que possam, em tese, constituir crime. Para deputados e senadores, nos temas conexos a sua função parlamentar, não há apenas liberdade de expressão, mas imunidade contra a sanção penal (CF/88, art. 53).

A tecnologia mudou a facilidade com a qual as pessoas podem se exprimir e atingir grande público, sem o filtro editorial dos grandes jornais e empresas de mídia. Não mudou, todavia, as grandes questões relacionadas às liberdades individuais.

Se há poucos anos a censura prévia representava a proibição de publicar a opinião na rádio, TV ou jornal, nos tempos de comunicação cibernética a censura prévia é também a retirada do direito de o indivíduo manter seu perfil em aplicativo ou sistema de rede social ou de informação. Tanto antes, como hoje, ao cidadão devem ser garantidos os meios de expressão do livre pensamento, sem prejuízo da sanção posterior, pelos excessos. O texto não confere margem para que determinados indivíduos – não importa sua ideologia – sejam expurgados da possibilidade de dizerem publicamente o que pensam.

Não há dúvidas de que os excessos devem ser sancionados, mas a escolha constitucional foi pela mera sanção posterior, seguindo o devido processo legal. Censura prévia, já a superamos com a redemocratização e com a Constituição cidadã de 1988.

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