O retrocesso está entre nós. Na educação (com o chiqueirinho cercado com arame farpado – classes especiais), no trabalho (com empresas se esquivando da lei de cotas), na aquisição de veículos (um tal de negociar as migalhas para se conseguir as isenções), no Conselho Nacional, sem Conselheiros (em nenhum Estado/municípios os Conselhos têm força suficiente para as demandas), no modelo social de avaliação das deficiência (insistem em nos adoecer para caber nos carimbos dos médicos), nas Conferências Nacionais (umas das maiores representações democráticas para a construção das políticas). São muitas as situações em que a pessoa com deficiência precisou reforçar a altura do grito para não presenciar o desmoronamento de todas as conquistas até dois anos atrás. Não caberia num texto apenas. Os anos de 2020 e 2021 têm apertado o movimento das pessoas com deficiência pelo pescoço, não dando trégua para um respiro. Um sufocamento absoluto.
O ano segue seu ciclo sem dar tempo para descanso, e as atrocidades de alguns gestores também, então “afina cavaco e viola, que a remandiola já vai começar”. Em se tratando de políticas públicas para as pessoas com deficiência, é continuar, não é? Como diz a música, “água no feijão que chegou mais um” retrocesso, desta vez diretamente do Senado: a aprovação do projeto da Câmara que retira a exigência a governos municipais e estaduais de cumprirem as exigências de acessibilidade nas obras públicas. Que derrota.
Estamos na obrigação de enfrentar essas inúmeras batalhas impostas pelo governo, elas são de fora, mas nos atingem dentro. E essa luta diária com as defesas nefastas sobre nós sem a nossa participação, são duras e difíceis de superar. A gente cansa com tantas tarefas, chega uma hora que ficamos anulados da capacidade de reagir. A energia se esgota, o voo não sai e imploramos por uma corda para nos tirar do fundo do buraco (esses vão ser bem fáceis de cair agora).
Quem sabe, relembrar que temos um conjunto de leis destinadas aos direitos das pessoas com deficiência, que é o mais abrangente do mundo, pode pouco a pouco nos tirar da escuridão? Vamos lá. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, homologada em 2006 pela Organização das Nações Unidas (ONU) é um dos mais recentes e mais importantes tratados internacionais de direitos humanos. Um marco que contou com a participação efetiva dos movimentos. Um documento que teve a voz das pessoas com deficiência em sua elaboração. É a única convenção com status constitucional.
São princípios da Convenção: a autonomia, a liberdade de fazer as próprias escolhas, a não-discriminação, a participação e inclusão, o respeito pelas diferenças e a pessoa com deficiência como parte da diversidade humana, a igualdade de oportunidades, a acessibilidade, a igualdade de gênero e o respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência.
Pensar na Convenção Internacional e na Lei Brasileira de Inclusão pode nos dar a esperança e um pouco mais de leveza para prevalecer a força e superar o desafio de se cumprir a nossa própria legislação. E quem sabe ganhamos um ar de alegria diante de tantas e horríveis cenas de exclusão dos últimos meses.
Acabamos de comemorar o Dia Nacional da Pessoa com Deficiência e esperávamos uma valorização da vida humana, um engajamento das instâncias públicas para garantir a inclusão, mas o que estamos assistindo são golpes violentos e sucessivos em nossos direitos. É importante reiterar que os avanços conquistados nas últimas décadas nas políticas públicas e sociais é fruto da participação plena e do diálogo democrático entre Estado e sociedade civil. Não podemos neste momento abandonar ou esquecer o lema que rege a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência: “nada sobre nós sem nós”.
Perdemos todos com essa aprovação desrespeitosa e sem sentido pelo Senado. Por aqui, no entanto, procuro caminhos para engrandecer diante do descaso, da ignorância e do autoritarismo. Caminhos que percorro com a bandeira de cidadã de direitos, às vezes a caneta me leva, mas quase sempre são as músicas que ouço, cujo poder é imenso em me inspirar. E o som da vitrola hoje está dizendo: “água no feijão que chegou mais um”. Porém, não o retrocesso, lá do começo, mas a força que nos une rumo a mais uma luta. A força que sempre tivemos para conquistar e garantir a equiparação de oportunidades. “Bota bastante água mesmo pra ficar numa boa, vai”.
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