Uma jornalista que ama os animais, assim é Rachel Martins. Não é a toa que ela adotou duas gatinhas, a Frida e a Chloé, que são as verdadeiras donas da casa. Escreve semanalmente sobre os benefícios que uma relação como essa é capaz de proporcionar

Cães conquistam o direito de serem autores de ação na Justiça brasileira

Abrindo precedente inédito no Brasil, os cachorros Rambo e Spike resgatados pela ONG Sou Amigo entraram como autores de uma ação judicial solicitando reparos pelos danos sofridos.

Publicado em 28/09/2021 às 09h41
Os cães Rambo e Spike são os autores de ação inédita na Justiça brasileira
Os cães Rambo e Spike são os autores de ação inédita na Justiça brasileira. Crédito: Divulgação

Eles são dois cães vítimas de maus-tratos por parte de seus tutores, em Cascavel, no Paraná. Mas Rambo e Spike resolveram entrar como autores com uma ação na Justiça, que foi impetrada pela advogadas animalistas Evelyne Paludo e Waleska Mendes Cardoso, representando a Ong Sou Amigo, que recolheu os dois animais depois de ficarem 29 dias sozinhos enquanto os donos viajavam.

O resultado favorável do julgamento de Rambo e Spike abriu um precedente único no país. Embora em primeiro grau, a Justiça em Cascavel tenha extinguido a ação por entender que os cães não têm a capacidade de ser parte de um processo, após um recurso, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) entendeu o contrário e os desembargadores foram unânimes em reconhecer o direito de ambos os animais de serem autores do processo e defenderem seus direitos.

"Sem dúvida, trata-se de um precedente histórico que certamente trará mais tranquilidade para os próximos julgadores que se depararem com demandas neste sentido. Os votos são brilhantes em suas fundamentações, servindo de fonte de estudo e reflexão para os demais julgadores", garante a advogada animalista Evelyne Paludo.

O RESGATE

A advogada animalista explica que Spike e Rambo foram resgatados em uma situação de maus-tratos por abandono e negligência no dever de cuidado dos tutores, pois eles estavam há semanas sozinhos no quintal dos fundos do imóvel enquanto a família viajava.

"Os vizinhos alimentavam os cães pelo muro, até que Spike apareceu ferido e com o passar dos dias a situação se agravou e resolveram buscar o auxílio da ONG Sou Amigo, que os resgatou e os encaminhou ao atendimento médico veterinário. Após a ocorrência, a ONG e os cães (representados pela entidade) entraram com uma ação na justiça para reparar os danos sofridos. A ONG pelas despesas no atendimento dos animais na clínica veterinária e Rambo e Spike pelo sofrimento vivido em razão da violação de seu direito à integridade física e psicológica (direito de viver livre de crueldade, presente na Constituição Federal, art. 225, parágrafo 1, inciso VII)", explica a advogada.

DIREITO ANIMAL

Já em relação a ação que em primeiro grau foi extinta, a advogada Evelyne Paludo ressalta que é natural o estranhamento do judiciário diante da nova leitura apresentada buscando a aplicação do Direito para além do ser humano. "O Direito Animal, embora nascido no Brasil há mais de 30 anos e com muita pesquisa acadêmica, ainda não tinha batido à porta do Poder Judiciário em busca do reconhecimento do direito dos animais de pleitear em juízo na defesa dos seus próprios direitos", alerta.

Segundo ela, o Código de Processo Civil (CPC), em seu artigo 18, proíbe que qualquer pessoa busque o judiciário pleiteando direito de outro. "O direito à vida livre de crueldade é dos animais, não cabe a qualquer outro buscar a justa reparação pelo sofrimento vivenciado por eles. Por esta razão, Spike e Rambo são autores da demanda, representados pela ONG Sou Amigo, dos atos processuais, como prevê o Decreto 24.645/34, em seu art. 2, parágrafo 3, originário do período de Getúlio Vargas".

A Judicialização Terciária, que ocorre quando o animal é o autor da ação, teve início no Brasil em janeiro de 2020, com o caso do pit bull Jack, em Cascavel, no Paraná, que também entrou com uma ação na justiça como autor, mas teve o processo extinto e está, hoje, com um recurso em andamento.

Vítima de maus-tratos, o pit bull Jack foi o primeiro cão a entrar como autor com uma ação na Justiça, no Paraná
Vítima de maus-tratos, o pit bull Jack foi o primeiro cão a entrar como autor com uma ação na Justiça, no Paraná. Crédito: Divulgação

"Mas, agora, em setembro de 2021, Rambo e Spike finalmente tiveram o reconhecimento pelo TJPR e seguem como autores do processo movido por eles contra os maus-tratos que sofreram nas mãos de seus antigos tutores. Um precedente único e muito importante no país", diz Evelyne Paludo.

HERANÇA FORTE

Ela explica, ainda, que a dificuldade de alguns juristas em reconhecerem os animais como sujeitos de direito, garantindo-lhes o acesso à justiça, é em razão da cultura originária do Código Civil de 1916, onde haviam apenas duas possibilidades: ou se era "homem" sujeito de Direito ou "objeto" de Direito, e automaticamente alocaram os animais na categoria dos objetos.

"É uma herança muito forte para os juristas, não apenas para os magistrados, mas também para os promotores e os advogados, de enxergar os animais pelo Código Civil de 1916, quando foram colocados na categoria de objetos, porque não eram homens. E assim criou-se essa cultura civilista de que os animais são bens semoventes".

Já o Código Civil de 2002, explica a advogada, não traz os animais como bens semoventes, em seu art. 82. "E se considerarmos que bens semoventes são todos capazes de movimento próprio, desconsiderando a necessidade de ser objeto de movimento próprio, o ser humano também poderia estar ali relacionado, tal qual os demais animais, pois nós, como eles, somos sujeitos capazes de movimento próprio", explica.

O que o Código Civil de 2002 fez, ressalta ela, foi retirar a palavra "homem" e colocar que toda "pessoa" é sujeito de direito - pessoa natural ou pessoa jurídica. Mas a pessoa natural não se resume apenas ao ser humano, nessa categoria entram os animais que experienciam a vida de forma subjetiva.

"O que eu defendo é que os animais entrem na categoria pessoa ou como entes despersonificados, porque são sujeitos de direito, não têm como ser objetos. Se o ser humano não pode ser considerado um bem semovente porque é um sujeito de direito, os animais também não, porque também são sujeitos de direito. E o sujeito de direito pela Constituição Federal não pode ser rebaixado de categoria para objeto de direito pelo Código Civil, porque a Constituição Federal é nossa lei maior", alerta.

O QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

E a Constituição Federal, ressalta Evelyne Paludo, confere aos animais o status de sujeitos de direitos ao lhes conferir o direito subjetivo à vida livre de crueldade. "Ela confere um direito aos animais e cria um dever aos seres humanos: não praticar atos cruéis contra os outros animais (é importante lembrar que nós também somos animais, da espécie humana. Não somos uma super espécie de outro reino)", ressalta.

O cão Jack e a advogada animalista Evelyne Paludo
O cão Jack e a advogada animalista Evelyne Paludo. Crédito: Divulgação

"A Constituição Federal a partir da aprovação do direito à vida livre de crueldade faz dos animais (todos, a universalidade animal, não apenas os animais de companhia) sujeitos de direitos e garante, em seu art. 5. XXXV, pelo Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, que todo sujeito de direito terá o acesso à justiça na defesa dos seus legítimos interesses, e os animais têm o legítimo interesse de não sofrer", conclui.

O FUTURO DE RAMBO E SPIKE

De acordo com a advogada Evelyne Paludo, Rambo e Spike permanecem sob a guarda da ONG Sou Amigo até que o processo se finalize e eles possam ser encaminhados à adoção responsável. "Agora, reintegrados como autores da ação terão seus pedidos de reparação do sofrimento vivenciado analisados pelo poder judiciário da Comarca de Cascavel, Paraná. A audiência deve ser realizada em novembro".

DIREITO É INTERPRETAÇÃO

Para a advogada capixaba Sara Peixoto Arrivabeni, especialista em Direito Empresarial e uma amante entusiasta da proteção aos animais, o movimento de superação dessa cultura antropocêntrica de que somente o homem é sujeito de direitos tem ganhado bastante força atualmente.

"Esse precedente vem ratificar esse movimento. É bom ressaltar que o Direito é interpretação e deve acompanhar, inevitavelmente, as mudanças da sociedade. Não há no ordenamento jurídico brasileiro uma norma concedendo de forma categórica a legitimidade aos animais. Mas na Constituição Federal existem princípios onde é possível conceder que o Direito precisa progredir, acompanhar a evolução da sociedade. A gente precisa não necessariamente de normas positivadas e normas escritas, mas também do viés principiológico. E nós temos um arcabouço principiológico na Constituição Federal que é capaz de conceder uma legitimidade aos animais no caso de um processo judicial, como foi esse do Paraná", explica Sara Arrivabeni

CASO DOS 22 GATINHOS DA PARAÍBA

Recentemente, nos dias 17 de agosto e 7 de setembro, a coluna "É o Bicho" fez duas matérias relatando a história de 22 gatinhos que “processaram”, como autores da ação na justiça, o condomínio onde vivem, em João Pessoa, na Paraíba.

Mas, infelizmente, lá a ação também foi extinta pela justiça que não aceitou os 22 felinos como autores do processo. Diante disso, o Instituto Protecionista SOS Animais & Plantas, através do Núcleo de Justiça da Universidade da Paraíba, e seu coordenador Francisco Garcia, impetrou um recurso denominado embargos de declaração, que também foi negado.

Por enquanto, os 22 gatinhos que já residem no condomínio antes mesmo dele ser construído, não podem receber alimentação e água das mãos dos moradores, que ficam sujeitos a multas caso desrespeitem a regra imposta.

O imbróglio teve início com a chegada de um novo condômino que não aceita os felinos no local e começou a fazer uma série de reclamações ao síndico, que por sua vez passou a notificar os “tutores” dos gatinhos que cuidavam de sua sobrevivência em todos os aspectos. Segundo Garcia, a entidade vai entrar, ainda esta semana, com uma outra ação.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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