O musical “Rent” é um dos mais bem-sucedidos e influentes espetáculos da Broadway. A história de um grupo de jovens artistas vivendo em Nova York às voltas com sexo, drogas e com a epidemia de Aids estreou oficialmente em 25 de janeiro de 1996 e permaneceu em cartaz até 7 de setembro de 2008. Johnathan Larson, roteirista e compositor de “Rent”, não viveu para ver o sucesso de sua peça, ele morreu subitamente um dia antes da estreia em decorrência de uma dissecção aórtica provavelmente causada pela Síndrome de Marfan.
Antes de “Rent”, porém, Larson teve um sucesso off-Broadway com o autobiográfico monólogo de rock “Tick, Tick… BOOM”, a jornada de um jovem autor de musicais que, às vésperas de completar 30 anos, ainda não conseguiu emplacar nenhum texto. Mesmo sendo encenada mundo afora, inclusive no Brasil, o espetáculo ainda não é tão conhecido quanto “Rent”, pelo menos até agora.
Dirigido por Lin-Manuel Miranda e escrito por Steven Levenson, responsáveis respectivamente por “Hamilton” e “Dear Evan Hansen”, “Tick, Tick… BOOM” chega à Netflix nesta sexta-feira (19) - a gigante do streaming pagou alto pelos disputados direitos do filme antes mesmo do início de sua produção.
Quando o filme tem início, somos introduzidos a Jon (Andrew Garfield) uma semana antes de seu aniversário de 30 anos. Uma imagem de qualidade de VHS o mostra em um monólogo, com um microfone na mão, explicando sua angústia com a idade. Conhecemos também o futuro de Jon antes de conhecermos aquele “presente”. “Tudo o que você está prestes a ver é verdadeiro, exceto os papéis que Johnatan inventou”, diz o texto, momentos antes de o protagonista se sentar ao piano para o real início do filme.
“Tick, Tick… BOOM” faz a interessante escolha narrativa de utilizar o espetáculo montado por Larson como fio condutor e reimaginar as histórias contadas por ele em um formato que mistura a narrativa convencional de um drama a interpretações de canções do musical - o filme deixa claro que estamos diante de uma história contada, com todos seus exageros e fantasias. Essa escolha, aliada à opção da peça original de retratar uma semana da vida de seu protagonista, afasta o filme das cinebiografias tradicionais e de algumas de suas armadilhas.
O início da narrativa parece um pouco acelerada, jogando o espectador no mundo de Jonathan sem preparo algum, mas assim que “30/90”, a canção de abertura, começa a ser interpretada, o filme conquista sua audiência. É fácil perceber que Jonathan está falando sobre a sua jornada em “Tick, Tick… BOOM”, mas todos os temas sobre os quais ele falaria em “Rent”, anos depois, já estão presentes em sua vida.
A estreia de Lin-Manuel Miranda na direção é um recorte biográfico feito com admiração - Larson é uma das principais influências de Miranda na arte de criar espetáculos autorais e ainda assim de grande apelo pop. Assim, o filme é sobre Larson, o gênio criativo que resolve seus conflitos com carisma e talento, mas é também sobre o fazer artístico, as pressões de um mercado em que muito dinheiro circula em fórmulas pré-estabelecidas.
É interessante perceber que “Tick, Tick… BOOM” foge das já citadas fórmulas e entrega um texto sem grandes antagonistas e com a vida como o grande conflito, o que chega a ser um paradoxo diante da paixão de Larson por ela. Seria fácil entregar ao roteiro com um crítico de teatro ou um produtor caricato impedindo o sucesso do protagonista, mas o filme é mais sobre as decisões que devem ser tomadas e como elas transformam a história de cada um.
O ritmo sempre acelerado oferece um filme ágil, mas também atropela algumas viradas dramáticas da trama, que parecem ser utilizadas como pontos de viradas mesmo que elas nem sempre tenham a ver com o protagonista. É quando lembramos também que “Tick, Tick… BOOM” é uma viagem ao ego de seu criador, uma obra sobre ele mesmo. A ausência de respiros mostra a inexperiência de Miranda na direção nos momentos não musicais do filme; quando a música ganha a tela, porém, o filme é impecável. Vale ressaltar que "Tick, Tick... BOOM" é tão "musical" quanto "Bohemian Rhapsody", por exemplo, não sendo sustentado pela narrativa toda em canções, como o ótimo "Um Bairro de Nova York".
Andrew Garfield impressiona como Johnatan Larson independente de qualquer semelhança física entre os dois. Sem experiência como cantor, o ator se sai bem cantando e demonstra uma entrega física e a intensidade que vêm se tornando uma marca em sua carreira. Garfield é perfeito quando seu interpretado caminha entre o burnout e a necessidade de criar, quase com um desespero em seus olhos, mas também com o brilho de que uma ideia pode surgir a qualquer instante.
“Tick, Tick… BOOM” é um musical que pode funcionar para quem não curte musicais. O filme é uma história de amor à arte e a jornada de um gênio em busca de reconhecimento para seu talento, mas é também um drama sobre uma figura interessante. Andrew Garfield tem uma atuação espetacular alternando entre o tom dos números musicais e da narrativa dramática com naturalidade, conectando as duas “histórias” do filme e dando peso à narrativa que separaria “um escritor que serve meses” de um “garçom com um hobby de escrever”.
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