A 123milhas, plataforma de turismo, entrou com pedido de recuperação judicial, nesta terça-feira (29), na 1ª Vara Empresarial de Belo Horizonte. Na ação, a empresa declara dívidas de R$ 2,308 bilhões.
Se um pedido de recuperação judicial é aceito, a companhia consegue evitar a cobrança de dívidas e ganha tempo para organizar um plano de pagamento. A empresa pede a suspensão pelo prazo de 180 dias de ações de credores e consumidores que tenham ido à Justiça após a interrupção de serviços.
Nesta segunda (28), a 123milhas anunciou uma reestruturação, com corte de pessoal. O número de demissões não foi informado, mas a Folha apurou que são cerca de 200 desligados. A empresa suspendeu ainda o site HotMilhas, de venda e compra de milhas aéreas.
O pedido de recuperação judicial é assinado por advogados dos escritórios TWK e Bernardo Bicalho. A ação abrange também a HotMilhas e a holding Novum, dona da 123milhas.
Entre as justificativas apresentadas pela companhia, a defesa capitaneada pelo advogado Joel Luis Thomaz Bastos destaca os postos de trabalho gerados pelas duas empresas — 427, no total —, além de "centenas de empregos indiretos".
Na petição, os advogados afirmam que a empresa não tem conseguido honrar com a entrega dos pacotes promocionais, que envolvem passagens e estadias sem data definida. O plano Promo123 foi suspenso no dia 18 de agosto.
De acordo com dados da 123milhas listados na petição inicial, o produto corresponde a apenas 5% do total de clientes, ou 250 mil de um universo de 5 milhões atendidos ao ano. Segundo a companhia, para ser viável, o produto deveria ter participação maior nos negócios.
Desde a suspensão dos planos até o último domingo (27), o site Reclame Aqui, a maior plataforma de reclamações on-line do país, somou 13.812 queixas relacionadas ao 123milhas.
Com a crise após a interrupção dos pacotes, os advogados afirmam que houve "grande comoção".
"Com isso, de fato, a credibilidade destas [empresas] diminuiu, acarretando o rompimento de contratos e a corrida de entidades para ajuizarem ações judiciais com pedidos liminares [provisórios] de bloqueios de valores, que podem ser fatais", escrevem.
A defesa da 123milhas diz na ação que apenas na capital mineira, onde a empresa tem sede, são ajuizadas, em média, quatro ações por hora contra a plataforma de turismo.
Especialistas em direito do consumidor afirmam que, com o pedido de recuperação judicial, os clientes lesados devem ser os últimos a receber. Nestes casos, é realizado primeiro o pagamento de dívidas trabalhistas e tributárias. No entanto, a orientação dos advogados é para que o consumidor acione o Judiciário em busca de garantir ao menos algum ressarcimento além dos vouchers oferecidos pela empresa.
De acordo com o relato da companhia à Justiça, outro fator que levou à crise é a alta dos preços das passagens cobrado pelas companhias aéreas. A 123milhas afirma que, com a retomada das atividades no pós-pandemia, ela esperava a queda dos preços, mas ocorreu exatamente o contrário.
Conforme especialistas ouvidos pela Folha, houve a alta do preço do combustível de aviação, ao mesmo tempo que as dívidas das aéreas tiveram de ser renegociadas no pós-pandemia, o que elevou o nível de endividamento das empresas.
Os advogados afirmam ainda que a Azul rescindiu um contrato que lhe dava vantagens competitivas aos preços das passagens. Fora isso, alega que sofreu com a alta taxa de juros sobre as suas dívidas.
"Não é surpresa uma empresa da área de turismo, que foi uma das mais afetadas durante a pandemia, peça recuperação judicial", diz o advogado Filipe Denki, da Lara Martins Advogados, especialista em recuperação judicial. "Toda a cadeia sofreu muito nos últimos anos e agora a crise emerge."
As turbulências na 123milhas começaram com o anúncio do fim das passagens e pacotes promocionais.
Fundada em 2016 em Belo Horizonte pelos irmãos Ramiro Julio Soares Madureira e Augusto Julio Soares Madureira, a 123milhas também é dona da Maxmilhas, adquirida em janeiro deste ano.
A operação cresceu tão rápido que, em 2021, a empresa se tornou o maior anunciante do país, com aporte de R$ 2,37 bilhões na compra de espaço publicitário.
O montante dava direito a globais e astros sertanejos como garotos-propaganda e presença garantida nos "fingers" (corredores que ligam o salão de embarque ao avião) de aeroportos em todo o país.
No ano passado, de acordo com o ranking Agências & Anunciantes, anuário publicado pelo jornal Meio & Mensagem, a 123milhas foi o segundo maior anunciante, com investimentos de R$ 1,28 bilhão.
Na petição apresentada nesta terça-feira, a empresa afirma ter registrado em 2022 um GMV (volume bruto de mercadoria, na sigla em inglês) de R$ 6,1 bilhões em 2022. O indicador GMV representa vendas totais dentro das plataformas digitais, sem contar cancelamentos e devoluções. Segundo estimativa do banco BTG, o faturamento da 123milhas gerou em torno de R$ 5 bilhões em 2022.
Segundo uma fonte do setor de turismo, que prefere manter o anonimato, o erro da 123milhas foi seguir os passos do Hurb, antigo hotel urbano, e dar início, durante a pandemia, à venda de passagens e pacotes "flexíveis" (sem data definida e, por isso, mais baratos).
Conforme já apontado pela Folha de S.Paulo, especialistas consideram este modelo de negócio de altíssimo risco, uma vez que não é possível prever os preços das passagens.
Em todo o mundo, as companhias aéreas só podem emitir bilhetes dentro de um prazo máximo de 320 dias, por considerarem que diferentes fatores são capazes de impactar o preço dos bilhetes: o câmbio, o preço dos combustíveis, os tributos, a situação macroeconômica local ou global.
A empresa bateu o recorde de reclamações no site Reclame Aqui. Até o último domingo (27), foram 42.246 queixas, mais do que a empresa observou em todo o ano de 2021 (36.085).
O pico de queixas contra a 123milhas ocorreu em 19 de agosto, um dia depois do anúncio de suspensão das vendas, quando a empresa registrou 3.415 reclamações no site. Até então, a 123milhas estava muito bem avaliada junto ao Reclame Aqui, com alto índice de respostas e resolução de problemas. Agora, a reputação da empresa aparece "sob análise" no site.
Já no ano passado, a 123milhas viu o montante de clientes descontentes com o serviço mais do que dobrar, de 36.085 para 75.867. Entre as queixas mais comuns ao longo do ano passado e deste ano estão "estorno do valor pago" e "propaganda enganosa".
O site Reclame Aqui também observou um pico de reclamações contra a HotMilhas, a primeira empresa dos irmãos Soares Madureira no negócio de turismo, fundada antes da 123milhas.
De acordo com o site, no acumulado de 1º de janeiro a 27 de agosto deste ano, foram 2.038 queixas contra a HotMilhas, que já superam as 1.878 registradas no ano passado. As reclamações mais comuns são "não recebimento do pagamento" e "problemas na utilização de pontos e milhas".
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