A economista-chefe do Banco Santander, Ana Paula Vescovi, afirma que os ventos favoráveis da economia mundial mudaram de direção, após uma acumulação recente de choques que jogam para baixo as expectativas de crescimento e trazem mais riscos inflacionários.
Capixaba, a economista foi secretária de Fazenda do governo de Paulo Hartung (até 2016). Depois, foi secretária do Tesouro Nacional no governo Michel Temer (única mulher a ocupar o cargo em 35 anos de existência da instituição). Em entrevista ao jornal "Folha de S.Paulo", Vescovi diz que o Brasil deve conviver com uma taxa de juros elevada por mais tempo, o que leva a uma desaceleração de crescimento em 2022 e a um desempenho ainda pior em 2023.
Na entrevista a seguir, a economista afirma não ver condições políticas para se aprovar, até as eleições, as reformas econômicas de que o país precisa. Diz ainda que um cenário com candidaturas que sinalizem o abandono do teto de gastos e da responsabilidade fiscal seria bastante estressante para a economia em 2022.
Nas últimas semanas houve uma piora no cenário internacional, o que inclui crise energética, mais riscos inflacionários, problemas na China, antecipação de retirada de estímulos nos EUA. Isso coloca um viés de baixa nas projeções de vocês para PIB e de alta para inflação, câmbio e juros?
Com certeza os ventos externos favoráveis mudaram de direção. Estamos observando uma acumulação de choques que trazem mais incerteza, mais risco. Há uma discussão sobre se eles se dissipam ou se são um pouco mais permanentes. São questões que estão em aberto. A grande dúvida é por quanto tempo estaremos expostos a esses choques antes de uma normalização. Isso tudo nos leva a um cenário de mais inflação, câmbio das economias emergentes mais depreciado e um cenário de crescimento mais contido.
Todo mundo já esperava que a recuperação da economia mundial ia alcançar um pico agora, já havia alcançado na China, e estava convergindo para um patamar de longo prazo. Mas ninguém esperava que outros choques iam se adicionar e trazer as expectativas de crescimento da economia global mais para baixo.
Para 2022, vocês têm uma projeção de crescimento de 1,7%, próxima da mediana de mercado, de cerca de 1,6%, mas para 2023 fizeram uma estimativa de PIB de apenas 1%. A economia brasileira vai continuar sofrendo com baixo crescimento, mesmo depois das eleições?
A gente vai passar por um ciclo de aperto monetário que deve terminar no começo do ano que vem. Diante desses choques, e dessa deterioração do cenário externo em particular, podemos ter uma Selic (taxa básica de juros) contracionista por um pouco mais de tempo do que estimado antes. Então nós vemos a economia em 2023 ainda muito afetada por esse ciclo monetário contracionista. E com um mercado de trabalho que já volta para o pré-pandemia, que vai ser a última variável a alcançar os níveis anteriores à crise.
A gente vai precisar ter uma clareza maior sobre os sinais que o novo governo já instalado em 2023 deverá emitir para os agentes econômicos sobre a sua estratégia, para que a gente tenha uma perspectiva mais favorável para investimentos, ambientes de negócios, reformas, enfim, para voltar a um crescimento maior e mais sustentado.
Para 2022 a sra. ainda não vê aquele cenário de crescimento próximo de zero, como algumas casas estão prevendo?
Não vejo. O que a gente tem nessa perspectiva, baseado inclusive nos dados de mercado de trabalho que já saíram, é que a gente vai ter na comparação desses com o próximo ano uma massa de salários real crescendo próxima de 3%. Isso nos leva a acreditar que tem alguma sustentação para um crescimento em torno desse número, aproximadamente 1,5%, não obstante o aperto monetário que está havendo, o aumento das incertezas e um ano que vai ter como destaque o processo eleitoral.
O que pode amenizar o risco de contaminação do cenário econômico pela disputa eleitoral em 2022?
O que amenizaria muito o cenário e seria inclusive um fator de melhora para o Brasil seria a gente voltar a ter um projeto político com ampla base de apoio, capaz de aprovar reformas que o país precisa.
Agora, o que pode levar a um cenário mais complexo é ter uma discussão política no ano que vem com a percepção de um risco muito elevado de abandono do marco fiscal, especialmente da regra do teto de gastos, de abandono da preocupação com a responsabilidade fiscal. Ou o apontamento de uma consolidação fiscal ainda mais lenta nesse cenário de alto risco para a trajetória da dívida pública. Isso tende a estressar bastante o cenário do ano que vem.
A sra. citou a questão do desemprego. Espera que a taxa volte para o nível de 2019 em 2023?
A taxa de desemprego, sim. O nível de emprego já volta no segundo semestre de 2022. Obviamente com uma composição diferente. A gente acredita que o emprego vai se recuperar, mas dentro de uma configuração de um pós-crise, provavelmente com uma composição menos favorável do mercado de trabalho, com mais informais, rendimento médio habitual diferente, mais emprego parcial, mais emprego intermitente.
Na massa de rendimentos, vocês estão contando com o novo programa Auxílio Brasil?
Temos na conta o programa cuja proposta o governo encaminhou ao Congresso, o Auxílio Brasil com valor médio de R$ 300, alcançando 17 milhões de famílias. Um programa de aproximadamente R$ 61 bilhões. [O Bolsa Família são R$ 35 bilhões].
Dentro do teto de gastos?
A gente está fazendo a leitura do Orçamento com tudo dentro do teto de gastos. O que a gente está adicionando ao cenário é essa perspectiva de aprovação da PEC [dos precatórios] tal como estipulou o relatório divulgado [no dia 7], com cerca de R$ 40 bilhões em precatórios que saem do teto.
Também nos preocupa o fato de não saber como vai ser endereçada a questão do próprio Auxílio Brasil. O projeto que foi enviado depende de uma fonte para viabilizar uma regra da Lei de Responsabilidade Fiscal. E essa fonte seria a tributação de dividendos. A gente precisa perceber que vai ser possível aprovar essa reforma ainda em 2021, o que é uma grande incerteza.
No relatório mais recente do banco vocês traçam um caminho, com a necessidade de redução do risco fiscal, de modo a gerar uma apreciação do real que contribua para uma desinflação. O Banco Central sozinho não vai conseguir trazer a inflação para a meta?
A questão fiscal está no centro. Óbvio que, recentemente, ela tem sido acompanhada por essa incerteza política institucional, com a proximidade das eleições e uma antecipação da corrida eleitoral.
A pandemia desviou a gente da rota da consolidação fiscal. A gente não vê o Brasil avançar no que leva à consolidação de forma estrutural, que é rever o tamanho do Estado e a composição do Orçamento. Tornar a destinação de recursos mais efetiva, não só para distribuição de renda, o que é primordial no Brasil, mas também para uma maior produtividade e eficiência da economia brasileira.
A gente não vê essas reformas na rota, houve um desvio a partir da pandemia, e isso é fundamental, porque senão vamos para onde já estamos indo.
Mesmo com a melhora recente nos indicadores fiscais?
Existe uma melhora no (resultado) primário. As receitas estão aumentando, muito em função de um choque de commodities e um ambiente inflacionário. As despesas estiveram contidas por conta do congelamento de salários no setor público. Isso pode não se verificar daqui para a frente. Essa melhora do primário pode ser mais circunstancial do que pensamos neste momento.
Além disso, já está contratado um aumento do custo de rolagem da dívida em função da alta da Selic, e é perceptível o aumento de risco sobre a dívida pública por vários fatores. Primeiro porque ela alcançou um nível mais elevado, 80% chegando a um pico em torno de 90% na nossa estimativa. É uma dívida muito alta para acreditar que só estabilizar isso nos tiraria de um cenário de risco.
O segundo (risco) é a rolagem maior, que praticamente dobrou durante a pandemia, porque a dívida aumentou e foi encurtada. O terceiro ponto é o custo de rolagem maior. Tudo isso nos leva a um cenário de bastante risco para a frente.
É possível, em um cenário de desemprego tão elevado e tanta demanda por gastos sociais, manter o teto em pé até o ano da revisão dele?
Consegue. Obviamente não é fácil. Por isso o teto foi tão efetivo em reduzir os juros estruturais da economia, foi tão importante para levar a gente a um ambiente de condições financeiras bem mais favoráveis. Mas ele precisa das reformas, rediscutir o gasto público no Brasil, o que é absolutamente prioritário. A gente não gasta pouco, de forma alguma. Gasta mal. É um diagnóstico que a gente tem já há algum tempo.
Enfrentar essa discussão, sobre o que é prioritário, reconhecer que o Estado tem limites, e que os limites são postos pela sociedade e pela sua capacidade de pagar impostos, isso precisa voltar à discussão.
O teto é viável, traz muitos benefícios, e esses benefícios já são observados. A retirada do teto nos preocupa muito, porque a gente pode voltar a um ambiente em que vamos ter de conviver com condições financeiras piores, portanto, um crescimento mais contido.
Dá para esperar por essas reformas até 2023?
Acho difícil, dado o ambiente em que estamos, conseguir maioria e consensos para essas reformas. Não é simplesmente aprovar uma reforma tributária. A gente tem de enfrentar os problemas do modelo tributário brasileiro.
Não basta falar 'vou aprovar uma reforma administrativa'. A gente tem de promover o que seria uma pequena revolução no setor público, que é ter avaliação de desempenho e deixar de ter as promoções e progressões automáticas. Esses dois fatores alinhariam bastante a atuação dos servidores públicos aos resultados que precisam ser entregues à sociedade. Isso traria elementos para, via gestão e planejamento, trilhar um caminho de melhoria nas políticas de educação, saúde, nas políticas públicas como um todo. São as grandes prioridades da economia brasileira, depois da reforma da Previdência.
Mas é difícil a gente conseguir, tanto a coordenação para alcançar ambas as reformas, quanto o próprio espaço político, dada a proximidade das eleições.
PERFIL
Ana Paula Vitali Janes Vescovi, 52, é economista-chefe e diretora de Macroeconomia do Banco Santander Brasil e membro do Conselho de Administração da Ultrapar. Foi secretária-executiva do Ministério da Fazenda, secretária do Tesouro Nacional e presidente dos conselhos da Caixa e do IRB (Instituto de Resseguros do Brasil) no governo Michel Temer. Também foi secretária da Fazenda do Espírito Santo. É bacharel em ciência econômicas, especialista em políticas públicas e gestão governamental e mestre em administração pública e em economia do setor público.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta