Uma investida de Elon Musk para flexibilizar as políticas de moderação de conteúdo do Twitter pode fazer com que a rede social se torne a favorita de políticos e influenciadores que vivem de espalhar desinformação e fazer ataques.
A avaliação é de Carlos Affonso Souza, diretor do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade). Segundo o especialista, diferentemente de redes sociais nichadas, o Twitter permite atingir pessoas de diversos espectros ideológicos, o que faria dele um ambiente mais atrativo para quem adota essa postura. "Para políticos e influenciadores que precisam chegar a um público maior, é mais interessante estar no Twitter do que falar para quem já está convertido", afirma.
Nesta segunda-feira (25), o conselho de administração da empresa aprovou a oferta de US$ 44 bilhões (R$ 214 bilhões) feita por Elon Musk para comprar a rede social.
Crítico contumaz das políticas de moderação do Twitter, o bilionário se descreve como um absolutista da liberdade de expressão e já afirmou que a aquisição não parte de uma motivação econômica. Para ele, tornar a rede social uma empresa privada é uma forma de garantir a livre circulação de ideias.
Na visão de Souza, as consequências dessa negociação podem ser relevantes para o Brasil. "Na medida que o Twitter passa por um processo de revisão das suas práticas de moderação de conteúdo, ele pode ocupar esse espaço que, até então, se desenhava no Telegram", diz.
Musk já criticou políticas de moderação de conteúdo e de exclusão de contas do Twitter. Com a aprovação da compra, quais mudanças podemos esperar?
A principal mudança que devemos prestar atenção é na governança da tomada de decisões sobre conteúdo na plataforma. Na medida em que o Twitter passa a ser propriedade de Elon Musk, precisamos entender qual é o papel que ele, como dono, vai ter nas decisões sobre o que pode e o que não pode ser feito.
Ele tem criticado bastante as políticas de moderação de conteúdo. Já disse que é um absolutista em termos de liberdade de expressão e que a plataforma tem um potencial para ser uma plataforma de liberdade de expressão global. Essa é a receita para as tensões com o ordenamento jurídico de outros países. Existem discursos que são permitidos nos Estados Unidos, dentro do conceito de liberdade de expressão, e que não são em outros países - inclusive no Brasil.
Podemos esperar, no futuro, que um Twitter com menos moderação de conteúdo seja um Twitter que tenha mais fricções com o Poder Judiciário e com governo nacionais.
O Twitter já tem um entendimento mais amplo de liberdade - ele, por exemplo, permite nudez. Até onde esse alargamento pode chegar com a compra pelo Elon Musk?
Eu acho que o Twitter pode virar a plataforma de preferência para políticos e influenciadores que vivem de espalhar desinformação e ataques de toda a espécie. Isso porque já existem plataformas que se anunciam como redes sociais com menos moderação de conteúdo e com isso elas acabam reunindo um certo público.
Mas, especialmente no Brasil, elas nunca decolaram para valer, nunca angariaram usuários que estão fora de um espectro político e ideológico muito específico. Por isso a compra do Twitter é tão relevante aqui. Ela de certa maneira transporta uma ideologia sobre liberdade de expressão e moderação de conteúdo para uma rede social muito diversificada e com uma base de usuários muito ampla.
Em última instância é disso que os políticos precisam. As redes sociais nichadas, sem moderação de conteúdo, não interessam para nada além de simplesmente se comunicar com uma base que eles já possuem. É pregar para convertidos. No Twitter não, um discurso de determinado político alcança usuários de outros espectros e se faz ouvido de uma maneira mais determinante.
Então temos aqui um ponto importante que é transformar o Twitter num polo muito atrativo para políticos que vivem desse expediente de desinformação e de ataques, porque ali ele vai fazer com que esse discurso possa atingir usuários ainda não sensibilizados pela sua visão.
Por isso que a disputa por estar no Twitter é tão importante, e isso nos conecta a Donald Trump [que foi excluído da plataforma em 2021]. Num Twitter com menos moderação de conteúdo e que passa por um processo de revisão das suas decisões, é de esperar que o caso do Trump seja retomado. E, caso o ex-presidente americano volte à plataforma, ele retorna num momento propício para turbinar a sua comunicação num momento de construção de uma futura campanha presidencial.
A revisão dessa decisão contra Trump deixaria Bolsonaro numa posição mais confortável?
Isso faz com que o Twitter possa se tornar uma rede social mais atrativa para esse tipo de discurso. O movimento de aumentar a base no Telegram que nós vimos com os apoiadores do presidente [Bolsonaro] veio muito ancorado não só na restrição a encaminhamentos de mensagens no WhatsApp, mas também [num momento] de maior moderação de conteúdo em diversas plataformas.
O Telegram ficou como uma rede social diferente desse grupo, porque o presidente teve conteúdos removidos no Instagram, no YouTube, no Twitter, no Facebook. Na medida em que o Twitter passa por um processo de revisão das suas práticas de moderação de conteúdo, caso isso venha a acontecer, ele pode ocupar esse espaço que, até então, se desenhava no Telegram.
Você acha que pode haver uma corrida de bolsonaristas para o Twitter?
Eu não diria corrida porque esse público já está lá, mas o que a gente veria é uma utilização maior, justamente por ser uma plataforma que teria uma restrição na moderação de conteúdo.
Agora, um ponto importante no Brasil. As transformações não acontecem do dia para noite e a eleição brasileira é no final deste ano. Resta saber se essa transmutação vai ocorrer num estalar de dedos. É importante entender o tempo que isso leva e se dá tempo de o Twitter se estabelecer com essa nova política para o contexto eleitoral.
Você acredita que pode ter algum impacto nesta eleição?
Precisamos esperar as cenas dos próximos capítulos. Eu não vejo o Twitter rapidamente transformando os seus termos e regras de funcionamento que são escritas. O que talvez mude é a prática de interpretação dessas regras.
Moderação de conteúdo não é só remover uma postagem ou etiquetar uma publicação. É também criar regras e aplicá-las. Uma mudança de postura do Twitter não implica apenas em mudar a interpretação das regras, mas pode implicar em mudar as regras como um todo, e isso leva tempo.
Uma mudança radical nas políticas de moderação pode conflitar com medidas de regulação no Brasil?
É bom lembrar que o Twitter não é o Telegram. O Twitter possui operação estabelecida no Brasil, e tem um histórico de atender e de debater decisões judiciais. Estamos falando de dois cenários muito diferentes. No debate sobre relação entre empresa e governo local, o Twitter está a anos luz [na frente] do Telegram.
O que podemos começar a ver são situações em que determinados discursos são denunciados pelos usuários, mas o Twitter não tira do ar - e eventualmente tem uma ordem judicial que determina a retirada desse conteúdo. Isso é um ponto que vai ser importante de analisar.
O Twitter tem um histórico de cumprir as decisões judiciais. Inclusive, no próprio caso da suspensão [do perfil do] Alan dos Santos, o ministro [do STF] Alexandre de Moraes determinou que a conta fosse removida não só do Twitter Brasil, mas do mundo todo. O Twitter contestou, mas cumpriu assim mesmo.
Então existe uma prática da empresa no Brasil em atender as ordens judiciais. O ponto que temos de prestar atenção é se isso muda; se o Twitter vai começar a desafiar ordens locais em nome de uma pretensa liberdade de expressão absoluta pregada pelo seu novo proprietário.
Como é exatamente essa liberdade de expressão que Musk defende?
Me parece que é uma liberdade de expressão nos padrões mais abrangentes possíveis, com restrições mínimas ao que pode ser dito e ao que pode ser feito numa rede social. Vale lembrar que o Twitter é uma empresa americana e que os Estados Unidos têm uma proteção à liberdade de expressão muito alargada. Determinados conteúdos, que no Brasil seriam classificados como discurso de ódio, nos Estados Unidos são permitidos por conta da liberdade de expressão.
A preocupação aqui é que, quando o Elon Musk diz que o Twitter precisa ser uma plataforma global para a liberdade de expressão, ele parte do pressuposto de que existe uma visão monolítica de liberdade de expressão, o que simplesmente não é verdadeiro.
A maneira pela qual diferentes povos se expressam passa por condicionantes que são jurídicas, mas que também são culturais, permeadas pelas inovações tecnológicas e pelas forças do próprio mercado. É importante entender que liberdade de expressão não é uma espaçonave que paira acima do ordenamento jurídico e da sociedade. Uma liberdade de expressão irrestrita pode representar aparentemente mais liberdade, mas não necessariamente é o melhor exercício desse direito.
Você acha que a visão de Musk sobre liberdade de expressão se aproxima do que acontece nas Chans [fóruns anônimos de discussão], por exemplo?
O Elon Musk tem um tipo de comunicação na rede que se assemelha muito a comunicação de uma Chan, com muito meme, muita trolagem. De certa maneira, a política se construiu em volta desse tipo de comunicação nos últimos anos. O que vamos precisar prestar atenção é o quanto a linguagem violenta das Chan também migra para o Twitter nessa nessa nova nessa nova direção.
Podemos esperar sim que o tipo de comunicação que Elon Musk utiliza se torne cada vez mais frequente na na plataforma.
Mudanças em prol de menos moderação e mais liberdade de expressão no Twitter podem frear o movimento de criação de redes sociais próprias?
No caso de redes sociais nichadas, que tem como principal ponto de atenção a restrição à alteração de conteúdos, [eu acho que] sim, porque aí o Twitter se torna o lugar preferencial para esse tipo de discurso. Para políticos e influenciadores que precisam chegar a um público maior, é mais interessante estar no Twitter do que falar para quem já está convertido.
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