Após aumentar durante a crise de 2015 e 2016 e não retroceder mais, a desigualdade racial no mercado de trabalho bateu recorde neste ano. Com a pandemia da covid-19 fechando milhões de vagas e obrigando o trabalhador informal a ficar em casa, a diferença na taxa de desemprego entre pretos e pardos e o restante da população alcançou em junho 5,45 pontos porcentuais, o maior patamar desde 2012 (início da série histórica). A última vez que essa diferença havia ultrapassado 5 pontos porcentuais foi em março de 2017, quando ficou em 5,24 pontos.
Enquanto o desemprego atingiu 15,8% entre pretos e pardos em junho, entre brancos, amarelos e indígenas, ficou em 10,4%, segundo dados da Pnad contabilizados pela consultoria LCA. A diferença decorre, sobretudo, do fato de a população negra ocupar mais cargos que demandam pouca qualificação, que costumam ser os primeiros cortados em uma recessão.
Grande parte dos negros também está no mercado informal e não pode trabalhar por causa das medidas de distanciamento social. Entre abril e junho, o número de pessoas nesse segmento caiu 24,9% na comparação com o mesmo período do ano passado. Foi o maior recuo entre todos os grupos analisados pelo IBGE.
Ainda no segundo trimestre, houve uma redução de 24,6% nas vagas para trabalhadoras domésticas, que também concentram a população negra. O resultado disso foi que a taxa de desemprego entre mulheres negras (pretas, pardas e indígenas) atingiu 18,2% em junho, entre as brancas ficou em 11,3% e entre homens brancos, 9,5%.
O economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social) lembra, porém, que outros motivos podem estar acelerado a desigualdade, como o preconceito. Isso porque o número de anos que os negros têm dedicado aos estudos cresceu 12,1% entre 2014 e 2019, enquanto entre os brancos o avanço foi de 7,5%, o que indica que a desigualdade na qualificação vem sendo reduzida.
Apesar dessa mudança, a renda da população negra recuou 4,9% no período e a da branca cresceu 1,8%. "O que está ao alcance das pessoas pretas e pardas, o estudo, está sendo feito. No entanto, o rendimento vem caindo", acrescenta Néri.
O economista destaca ainda que a distância educacional entre negros e brancos pode voltar a crescer com a pandemia. Dados do IBGE mostram que 17,3% das crianças negras não receberam o material para estudar em casa em agosto. Entre brancos, foram 8,3%.
Atuando há dez anos em um dos maiores bancos privados do País, Jessica Karine Gonçalves dos Santos, de 33 anos, está entre aqueles que estão elevando os anos de estudo da população negra. Hoje pós-graduada, ela começou na área de call center do banco e chegou ao cargo de analista de RH, mas foi demitida na pandemia
Jessica, que estava trabalhando em uma proposta para aumentar a contratação de negros pelo banco, diz nunca ter sofrido ataques diretos por causa de sua cor, mas conta que havia algumas atitudes que alimentavam a percepção de desigualdade. "Era possível sentir, em alguns casos, que eu era mais cobrada por resultados que os demais."
Após ser desligada do banco, Jessica criou um grupo no WhatsApp para mulheres negras. A ideia é que elas se apoiem e debatam temas ligados à inclusão.
Apesar de a pandemia ter aprofundado a desigualdade racial, as diferenças entre negros e brancos sempre existiu. O economista Michael França, pesquisador do Insper, destaca que a discriminação é um custo maior na vida dos negros. "Pelo fato de estar em posição de maior vulnerabilidade social, o negro tem de lutar contra a pobreza e contra o viés racial", diz.
França aponta a necessidade de se atacar a presença de negros na televisão em papéis de subordinação como forma de reduzir a desigualdade racial.
Para o sociólogo Mário Rogério, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, é essencial que as empresas debatam o assunto, dado que o costume dos funcionários e executivos é indicar e promover seus semelhantes. "Não existe placas nas empresas de que elas não contratam negros, mas a prática é procurar sempre os iguais. Esse é um movimento cotidiano que ninguém questiona. E é lógico, os negros ficam do lado de fora."
Membro da Rede de Economistas Pretas e Pretos, Danielle Nascimento lembra que a desigualdade racial no mercado de trabalho reflete as condições sociais da população. "Se a pessoa não têm acesso à educação ou está em condição de vulnerabilidade, a distância (dela em relação a grupos privilegiados) aumenta na crise, quando as desigualdades tendem a crescer. O primeiro ponto que precisa mudar é o acesso a oportunidades."
Assim como a economia em geral, duas iniciativas que trabalham para reduzir a desigualdade racial no mercado de trabalho sentiram o impacto da crise da covid no primeiro semestre deste ano. A EmpregueAfro, empresa de recursos humanos que recruta e seleciona apenas trabalhadores negros, e o Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), ONG que estimula a diversidade étnico-racial no mundo corporativo, perceberam que, em meio à recessão, a inclusão passou a ser tratada como supérfluo pelas empresas. Uma tragédia, porém, reverteu a tendência.
"Depois de George Floyd (americano negro que foi sufocado por um policial branco em maio), o dinheiro apareceu", diz a fundadora do ID_BR, Luana Génot, em referência ao número de companhias que passaram a contratar seus serviços. Segundo ela, o total de empresas que procuraram a ONG em busca de treinamentos e de um "selo" que atesta que a companhia está comprometida e trabalhando para aumentar a inclusão aumentou 400% depois do assassinato de Floyd.
"A sociedade começou a pressionar e a questionar mais as empresas. A gente percebe que (trabalhar pela inclusão) é sobre ter um senso de urgência", acrescenta Luana.
Na EmpregueAfro, a demanda cresceu 250%, também na esteira do caso Floyd, e dois funcionários foram contratados, ampliando a equipe para oito pessoas. "É triste que isso só aconteça após um episódio como esse, mas a comoção global e a indignação contra o racismo motivaram as empresas a fazerem algo", afirma a fundadora da companhia de RH, Patrícia Santos.
De acordo com Patrícia, a iniciativa da Magazine Luiza de aceitar apenas negros para seu próximo programa de trainee também aumentou a preocupação das empresas por questões de inclusão racial. Com 20 anos de atuação na área de RH, ela criou a EmpregueAfro há 15 anos, mas passou a se dedicar integralmente há sete anos. "No começo, achavam que eu era louca, que a empresa não teria sustentabilidade. Hoje, o número de empresas querendo implantar programa de diversidade está absurdo."
A empresária, no entanto, conta que 90% das companhias que buscam seu serviço são multinacionais, que são pressionadas pelas matrizes. "O direcionamento vem de fora. As multinacionais entendem melhor que existe uma dívida histórica (com os negros). Muitas empresas brasileiras negam a existência de racismo."
Para a empresária, o mercado de trabalho é a origem de toda a desigualdade racial da sociedade. "O mercado reflete o racismo estrutural da nossa sociedade, que tem origem na escravidão", diz ela, que acredita que a maior parte dos negros, quando consegue um emprego, acaba conseguindo pagar uma universidade e estudar.
A própria Patrícia é um exemplo prático de sua teoria. Crescida na comunidade de Heliópolis, em São Paulo, ela começou a trabalhar aos 13 anos como recepcionista. Três anos depois, quis estudar medicina, quando ouviu de seu pai, hoje um metalúrgico aposentado, que essa não era uma profissão para negros. "Levei um choque quando ele disse isso. Falei: 'a cor da nossa pele e o lugar que a gente mora determina o que é para gente ou não?'"
Patrícia pensou, então, em fazer psicologia, mas optou por pedagogia porque era mais barato. Trabalhava como vendedora para pagar a faculdade até conseguir estágio em uma empresa de RH, onde começou a carreira. "A minha primeira chefe, sem saber, me deu uma oportunidade de inclusão em um mundo que não tinha tantas pessoas como eu."
Ao contrário de Patrícia, Luana, do IB_BR, vê as empresas brasileiras também se movimentando para aumentar a inclusão, ainda que muitas vezes as nacionais sejam motivadas pelas internacionais. "Hoje, as empresas estão conectadas de alguma forma. As brasileiras estão em um mesmo ecossistema (das estrangeiras), muitas vezes são fornecedoras delas. Mas a gente percebe que a ação vem mesmo por causa da pressão da sociedade "
Nessa agência, cujo trabalho é focado no público afro-americano, Luana viu aonde queria chegar ao conhecer a presidente da empresa, McGhee Williams. "Eu nunca tinha visto uma mulher negra, de pele preta como a minha, chefiando tanta gente. Falei: 'quero ser igual'. Representatividade é isso. Você ver algo e poder traçar seu plano."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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