O analista de planejamento financeiro Diego Martines, 25, costumava consumir todo seu crédito de vale-refeição antes mesmo do mês acabar. Isso o obrigava a gastar uma parte do salário para complementar o benefício para refeição.
Um levantamento feiro pela CNDL (Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas) e pelo SPC Brasil (Serviço de Proteção ao Crédito) do início de 2019 aponta que 52% dos consumidores costumava estourar o valor mensal que recebia do benefício.
Com a pandemia, a situação se inverteu. No caso do analista financeiro, além do distanciamento social e do home office que o deixaram longe dos restaurantes, o receio do contágio fez com que ele, inicialmente, evitasse pedir comida em casa, levando a uma poupança forçada do benefício.
"Até então nunca sobrava dinheiro [no vale-refeição]. Quando começou a pandemia, fiquei uns dois meses quase sem usar o cartão, chegando a guardar uns R$ 500", diz Martines.
O relato do analista não é um caso isolado. Brasileiros acumularam créditos do benefício durante a pandemia, segundo dados de algumas das empresas que trabalham com cartões e tickets de vale-refeição.
"Antes da doença, já havia um comportamento, por 10% dos usuários do cartão, de economizar o crédito. Com o distanciamento esse número subiu porque houve uma poupança involuntária", afirma Willian Tadeu Gil, diretor de relações institucionais da Sodexo.
Enquanto os brasileiros permaneciam firmes nas quarentenas, a empresa, nos meses de maio e junho, percebeu que 24% dos usuários acumulavam algum crédito do benefício.
Além de ter aumentado o número de brasileiros com dinheiro represado no cartão, também ocorreu uma alta na mediana do valor guardado. No período anterior ao distanciamento, o montante poupado girava em torno de R$ 50, enquanto entre os meses de maio e junho, a mediana subiu para R$ 97.
Outra grande empresa que administra o benefício é a Alelo. A companhia não divulga dados específicos sobre o acúmulo de créditos nos cartões, mas junto à Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) divulga mensalmente um índice sobre o consumo em restaurantes por meio do vale-refeição.
O ICR (Índice de Consumo em Restaurantes) mede tanto o valor total gasto pelos consumidores, o volume de transações e o número de estabelecimentos que recebeu o pagamento via vale. Os três recortes apresentaram em abril deste ano os números mais baixos da série, que teve início em janeiro de 2018.
Em relação aos valores pagos (o recorte que melhor pode indicar represamento dos benefícios), o índice em base 100 caiu de 78,6 pontos em março para 49,5 em abril. Desde então, o número vem subindo gradativamente e atingiu 72,5 pontos em agosto.
Entre janeiro de 2018 e dezembro de 2019, o ICR para valores gastos nunca ficou abaixo de 93,2 pontos.
A VR Benefícios diz em nota que no caso do vale-refeição "houve um acúmulo de saldo pontual no mês de maio". Nos meses seguintes, a empresa afirma que os números voltaram ao patamar pré-pandemia.
Já a Ticket foi a única das grandes marcas a não perceber o movimento de acúmulo. Segundo a diretora de produtos da empresa, Adriana Serra, até há um contingente pequeno de usuários que costuma guardar parte do benefício, mas esse número se manteve estável durante o período da pandemia.
"Não vimos uma mudança na quantidade de usuários com esse tipo de comportamento", afirma. "Pessoas que acumulavam continuaram guardando, talvez até um pouco mais, mas nesse caso é um comportamento que independe da siutação em que vivemos."
O acúmulo do benefício observado pelas marcas ocorreu principalmente no ápice do distanciamento social, no início da pandemia. Isso se explica pela forma como o mercado de trabalho se comportou, pela flexibilização da quarentena ao longo dos meses e pelo uso crescente do benefício em aplicativos de entrega de comida.
No caso do mercado de trabalho, Daniel Duque, pesquisador do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia), da FGV, afirma que a pandemia impactou inicialmente os trabalhadores do setor informal, que não têm benefícios, como vale-refeição.
"Esse crédito está atrelado a uma refeição feita em restaurantes próximos ao local de trabalho. Quem se manteve empregado, recebendo o valor, acabou não usando o vale porque cozinhou em casa e também porque muitos estabelecimentos ficaram inicialmente fechados por conta da pandemia", diz.
Duque afirma, no entanto, que agora o mercado informal já deixa de cair, enquanto os celetistas continuam impactados, o que pode explicar o fim da poupança do benefício.
"Está ocorrendo esse movimento de perda de empregos formais, que vai influenciar aqueles que perderam emprego a gastar o benefício, sem reposição. Mas também há o movimento de volta de serviços de refeição."
Esse retorno de consumidores aos restaurantes é reflexo também da flexibilização da quarentena, como mostra levantamento da Sodexo. Dados de julho e agosto apontam uma migração de refeições em restaurantes localizados em centros empresariais para estabelecimentos mais próximos de residências.
O comportamento, segundo a empresa, foi verificado em 23 capitais do país, e em algumas o crescimento chegou a ultrapassar 100%. Em Cuiabá, por exemplo, houve uma alta de 276% no consumo entre os restaurantes de bairros residenciais, enquanto em centros comerciais houve uma queda de 46%.
Na capital paulista, houve avanço de 36% no consumo entre os principais restaurantes de bairros residenciais. Já nos de bairros comerciais, houve, em média, uma queda de 61% no consumo. Enquanto as refeições caíram 78% na Vila Olímpia, na Vila Mascote saltaram 67%.
Junto desses movimentos, há ainda o uso crescente de aplicativo na compra em restaurantes. O Uber Eats, por exemplo, aceita o Ticket Restaurante desde dezembro do ano passado e, de março a setembro, a marca registrou um crescimento de 600% no uso do benefício como forma de pagamento no app.
Já o iFood passou a permitir o uso de vale-refeição Alelo, Sodexo, VR e Ticket em abril deste ano. A empresa não informa o percentual ou o crescimento dos pagamentos com o benefício, mas afirma que hoje 36,5 mil restaurantes aceitam o vale pelo app. A companhia também lançou em julho o iFood Refeição, um vale digital da própria marca para empresas e trabalhadores.
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