O ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, mantêm empresas em paraísos fiscais, situação em que pode haver conflitos de interesses, segundo especialistas, e já levanta questionamentos entre parlamentares.
A existência desses investimentos foi revelada neste domingo (3) por veículos como a revista Piauí e o jornal El País, que participam do projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ. Os documentos fazem parte da Pandora Papers, investigação sobre paraísos fiscais promovida pelo consórcio.
Parlamentares da oposição disseram que vão acionar o Ministério Público Federal para investigar as revelações. Eles também pretendem convocar Guedes e Campos Neto para darem explicações na Câmara dos Deputados.
O líder da oposição na Câmara, Alexandre Molon (PSB-RJ), considerou os fatos como um "escândalo", que violam o artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal, e afirmou que eles deveriam levar à demissão do ministro.
O Código de Conduta da Alta Administração Federal proíbe, em seu artigo 5º, "investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas".
"Nós, da oposição, vamos propor a convocação do Ministro e do presidente do Banco Central para prestar esclarecimentos à Câmara dos Deputados e entrar com representação no Ministério Público Federal por improbidade administrativa contra ambos", prometeu Molon.
Guedes se tornou o principal alvo de críticas dos congressistas, apesar de as publicações também trazerem informações semelhantes sobre Campos Neto.
"Quer dizer que o ministro que ataca todos os incentivos fiscais da indústria brasileira e, em especial a ZFM [Zona Franca de Manaus], tem offshore em paraíso fiscal para não pagar imposto no Brasil? Não é só uma questão legal, é uma questão ética e de coerência com o discurso", questionou o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), em uma publicação no Twitter.
Offshore é um termo em inglês usado para definir empresa aberta em outros países, normalmente locais onde as regras tributárias são menos rígidas e não é necessário declarar o dono, bem a origem e o destino do dinheiro.
Não é ilegal ter uma offshore, desde que declarada à Receita Federal, mas a falta de transparência desse tipo de empresa faz com que, normalmente, sirvam para fins ilícitos, como ocultação de patrimônio.
No caso de Guedes e de Campos Neto, a Receita foi informada. No entanto, há um questionamento adicional, o conflito de interesse. Ambos ocupam cargos públicos que lhe dão acesso à elaboração das leis que tratam como o Brasil vai lidar com esse tipo de empresa, bem como das regras que regem o fluxo de recursos entre o país e o exterior.
Para Mauro Menezes, ex-presidente e ex-membro da Comissão de Ética Pública, o colegiado deve investigar o caso, mesmo que nenhuma irregularidade tenha sido identificada nas informações prestadas por Guedes e Campos Neto em 2019.
Menezes cita como exemplo de um possível conflito de interesses o fato de o ministro ter anuído com as mudanças feitas pela Câmara dos Deputados no projeto da reforma do Imposto de Renda que acabaram excluindo a regra que taxaria anualmente recursos de brasileiros em paraísos fiscais.
"Talvez isso mereça, sim, uma investigação. Creio que mereça, porque o mínimo que se espera é que haja um esclarecimento. Até que ponto o ministro de Estado da Economia contribuiu, interferiu, influiu numa decisão da qual ele é interessado? Se isso aconteceu, estaremos diante de um conflito de interesse. Mesmo que nada tenha sido detectado quando ele prestou esclarecimento à Comissão de Ética Pública, esses fatos em si já constituem, ao meu ver, um indício de conflito de interesse", afirma.
Ele ainda lembra que a Lei de Conflito de Interesses e o Código de Conduta da Alta Administração Federal deixam explícito que a autoridade que assume um cargo público não deve estar numa situação que a comprometa em razão do exercício de atividades privadas por si, por familiares ou por empresas da qual faça parte.
"A situação de potencial conflito, ou seja, a existência de uma perspectiva de decisões dessa autoridade que possam influenciar para o bem ou para o mal os negócios pessoais, da família ou de suas empresas já configura uma situação de conflito de interesses em potencial", explica.
Outro deputado a defender a convocação de Guedes para prestar esclarecimentos foi Kim Kataguiri (DEM-SP). "Além da convocação, apresentarei representação ao MPF para que o ministro seja investigado. Em havendo comprovação, é caso de impeachment e cadeia", escreveu.
O vice-líder da minoria na Casa, deputado José Guimarães (PT-CE), afirmou que as informações evidenciam conflito de interesse pelo fato de Guedes fazer parte do alto escalão do governo.
"Ele [Guedes] tem a obrigação de explicar se movimentou ou não sua offshore milionária. Do contrário, precisa ser investigado pelos órgãos de controle e pelo Congresso", disse.
Segundo as reportagens, Guedes, sua esposa e sua filha são acionistas de uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, conhecido paraíso fiscal. Em 2015, ela tinha US$ 9,5 milhões (aproximadamente R$ 51 milhões, em valores atuais), detalham as reportagens. Em sua resposta às reportagens o ministro não deixa claro se enviou recursos à offshore após assumir a pasta.
A criação dessa empresa foi intermediada por uma companhia suíça que oferece serviços para quem deseja manter suas atividades financeiras ocultas.
A investigação jornalística encontrou apenas outros três chefes de economia de países que têm recursos em paraísos fiscais, segundo as publicações: os de Gana, do Cazaquistão e do Paquistão.
Já o presidente do Banco Central é dono de quatro empresas, segundo o El País. Duas delas no Panamá, em sociedade com sua esposa, outra delas nas Bahamas. Uma quarta é de "gestão de bens imóveis". Em suas respostas às reportagens, o presidente do Banco Central afirmou não ter feito operações nessas offshores após assumir o cargo.
Outros especialistas procurados pela reportagem divergem a respeito da possibilidade de haver conflitos de interesses nos dois casos. "Politicamente, é algo um pouco delicado. Quem tem offshore é porque não quer investir todos os seus recursos no Brasil, porque considera que a economia brasileira não é tão segura ou não é tão rentável", diz o presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT) Igor Mauler Santiago.
"Por outro lado, a discussão que eles [Ministério da Economia] estão fazendo é no sentido de tributar o que hoje não é tributado", afirma. "Esse ponto acabou caindo [no projeto], por uma série de injunções e pressões, mas me parece que essa era a posição tributária dele [Guedes]. Seria contra o patrimônio dele. Então não acho cabível falar em conflito de interesses."
Já o professor de direito tributário Renato Vilela Faria afirma que dispositivos da reforma do Imposto de Renda podem levantar questionamentos, sim, a respeito de conflito.
"Há dispositivo em relação a investimentos no exterior que pode se cogitar de eventual conflito de interesse em editar uma legislação cujo impacto é positivo para quem detém esses investimentos", diz Faria.
"Ele permite você corrigir a valor de mercado investimentos no exterior e tributar a uma alíquota de 6% em detrimento de uma alíquota de 15%. Se isso virar lei, já tem muita gente avaliando como uma oportunidade."
Procurado, o Ministério da Economia afirma em nota que toda a atuação de Guedes "foi devidamente declarada à Receita Federal, Comissão de Ética Pública e aos demais órgãos competentes, o que inclui a sua participação societária na empresa mencionada".
"As informações foram prestadas no momento da posse, no início do governo, em 2019. Sua atuação sempre respeitou a legislação aplicável e se pautou pela ética e pela responsabilidade", diz a nota, que acrescenta que ao assumir o cargo, o ministro se desvinculou de toda a sua atuação no mercado privado.
A reportagem questionou se não há conflitos de interesses na manutenção dos recursos e se foram feitos repasses à offshore após a nomeação, mas não houve resposta.
Já Campos Neto afirmou, também em nota, que seu patrimônio foi construído com rendimentos ao longo de 22 anos de trabalho no mercado financeiro, inclusive com funções no exterior.
"As empresas foram constituídas há mais de 14 anos. A integralidade desse patrimônio, no País e no exterior, está declarada à Comissão de Ética Pública, à Receita Federal e ao Banco Central, com recolhimento de toda a tributação devida e a tempestiva observância de todas as regras legais e comandos éticos aplicáveis aos agentes públicos", afirmou.
"Não houve nenhuma remessa de recursos às empresas após minha nomeação para função pública. Desde então, por questões de compliance, não participo da gestão ou faço investimentos com recursos das empresas", disse. Ele não se manifestou sobre possível conflito de interesses.
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