A ala militar do governo Jair Bolsonaro cogitou burlar as regras do teto de gastos e, pela segunda vez neste ano, foi derrotada.
Nesta terça-feira (21), a proposta de destinação de parte dos recursos do Fundeb, o fundo que financia a educação básica no país, para o Renda Brasil foi abortada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O governo aceitou o acordo, que, em troca, permitiu que parte do assistencialismo planejado pelo governo fosse realizado pelo investimento em creches.
Técnicos do Congresso e do Tribunal de Contas da União (TCU) consideraram o plano uma manobra para burlar o teto de gastos, já que os recursos do Fundeb não são computados no cumprimento dessa meta fiscal.
A legislação que define o teto determina que o limite de crescimento dos gastos de um ano para o outro é a correção pela inflação do período. Se fosse ampliar a verba orçamentária para o Renda Brasil, novo nome do Bolsa Família, haveria estouro do teto, segundo os técnicos.
Pouco após a derrota do Fundeb no Congresso, a Casa Civil desistiu de fazer uma consulta ao TCU para saber se o Ministério da Infraestrutura e o do Desenvolvimento Regional poderiam executar obras fazendo seu lançamento na contabilidade como investimento.
Os investimentos não são considerados despesas e, portanto, também escapariam do teto. Esta é a segunda tentativa do governo de escapar dessa regra.
No final de abril, já em meio à pandemia, a ala militar do governo, comandada pelo ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, preparou o Plano Pró-Brasil, um conjunto de medidas e de obras para tentar reativar a economia depois da onda do coronavírus.
O plano foi costurado pelo general com base em propostas apresentadas pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e o da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, só foi informado na reunião ministerial ocorrida no dia do anúncio do plano, no início de junho.
Guedes considerou a proposta de Marinho uma traição porque seria algo similar ao "PAC da Dilma" e levaria o país a estourar o teto de gastos. Depois do atrito, a equipe econômica passou a fazer parte das discussões.
No caso das obras da Infraestrutura, chegou-se a um acordo para que fossem realizadas dentro dos limites orçamentários estabelecidos. Haveria um acréscimo de R$ 2 bilhões.
A proposta de Marinho era ambiciosa porque contemplava mais obras para atender a base política com quem o governo negocia apoio no Congresso.
Segundo assessores do presidente, as manobras fiscais desta semana se inserem neste contexto. O Planalto ainda tenta encontrar saídas para levar adiante as obras e, assim, concluir a negociação por apoio no Congresso.
A equipe econômica vinha resistindo. Mas, desta vez, aceitou a manobra no caso do Fundeb como forma de evitar que os recursos fossem destinados ao aumento salarial dos professores.
Assessores de Guedes consideram que, historicamente, parte desse dinheiro vira reajuste salarial. Mesmo assim, eles afirmam que o ministro continua firme na defesa do teto.
As duas manobras do governo, no entanto, tiveram custos. Os juros futuros voltaram a subir, uma sinalização de descrédito do mercado em relação à austeridade fiscal do governo.
Para analistas de mercado ouvidos pela reportagem, um contrato de Depósito Interfinanceiro (DI) para janeiro de 2022 tinha juro projetado de 2,9% na segunda-feira (20). No final desta terça, após as notícias das manobras fiscais, esse título subiu para 3%.
Outro papel semelhante com vencimento em 2027, passou de 6,3% para 6,4%.
Nos bastidores, ministros do TCU consideraram as duas medidas - Fundeb e obras - uma afronta à regra do teto. Avaliaram que, neste caso, seria melhor Bolsonaro e Guedes liderarem um movimento junto ao Congresso pela flexibilização do teto.
Para eles, haveria aumento do endividamento público no momento em que os gastos para tentar conter a pandemia causada pelo coronavírus já atingiram R$ 826 bilhões, valor equivale à economia gerada pela reforma da Previdência, o mais importante esforço fiscal realizado pela gestão Bolsonaro até o momento.
"Esses dois sinais foram péssimos [Fundeb e consulta ao TCU]", disse Fábio Klein, consultor-sênior da Tendências.
O analista considera que a inclusão de obras como investimento na contabilidade do governo vinha sendo tratada pela consultoria como uma flexibilização do teto.
"Antes da pandemia, tivemos a reforma da Previdência, mas ela já se mostrava insuficiente [para conter a expansão de gastos]. As outras reformas foram paralisadas ou mudaram [amenizadas] e a gente só vê uma tendência que sinaliza para mais gastos."
Para o consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados, Ricardo Volpe, isso não seria um problema se o país fosse como a Alemanha, com poupança interna capaz de sustentar gastos vultosos.
"Acabar ou flexibilizar o teto significa pôr fim à única regra fiscal que, na prática, está em vigor atualmente", disse Volpe.
"Repetimos há anos um déficit primário [uma das metas fiscais] e, neste ano, não vamos cumprir novamente a regra de ouro [outra meta]."
O déficit reflete mais gastos que despesas e a regra de ouro, definida por lei, barra a contratação de empréstimos para pagar despesas correntes, como salários de servidores.
"É o teto que pode segurar essa loucura. Se esse movimento persistir, lá na frente teremos a volta da inflação e juros mais elevados", disse Volpe.
A Casa Civil informou que não fez consulta ao TCU.
Em nota, o Ministério da Economia afirmou que não "existe perspectiva ou discussão" que implique alterar o teto dos gastos. "Pelo contrário, o teto vai ser cumprido e observado, pois é a âncora da solidez fiscal do país."
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