O novo marco regulatório do saneamento, que na prática incentivará a ampliação da participação de empresas privadas no setor, ainda depende de regulamentações que serão alvo de disputa política entre o setor privado e as estatais.
Entre a regulamentação e a modelagem dos novos projetos, especialistas acreditam que as primeiras licitações devam começar a sair do papel apenas em 2023. Os investimentos em saneamento são a grande aposta do governo federal para a recuperação econômica pós-pandemia do novo coronavírus.
O novo marco do saneamento prevê que a universalização dos serviços de água e esgoto seja atingida até 2033, o que demandaria investimentos da ordem de R$ 750 bilhões, segundo estimativa da consultoria KPMG encomendada pela Abcon (associação das operadoras privadas de saneamento).
A projeção leva em conta a realização tanto de aportes para expansão da infraestrutura de saneamento quanto recursos para recompor a depreciação dos ativos existentes.
A concretização desses investimentos, no entanto, depende da regulamentação de pontos da lei que ainda opõem as companhias estaduais de saneamento (responsáveis por 72% do setor) e as operadoras privadas (que hoje têm 6% de participação de mercado).
A nova lei permite maior competição no setor porque acaba com a figura do chamado contrato de programa, que permitia às companhias estaduais fornecerem os serviços de água e esgoto aos municípios sem concorrência direta.
Pelo texto aprovado, as estatais terão até março de 2022 para negociar com os municípios em que atuam a transformação desses contratos em concessões com prazos de até 30 anos.
Em contrapartida, precisam estabelecer metas de universalização dos serviços e demonstrar capacidade para realizar os investimentos necessários para cumprir os contratos.
As balizas financeiras para avaliar a capacidade do cumprimento das metas são um dos pontos que ainda precisa de definição por decreto, que deverá ocorrer em até 90 dias depois da sanção da lei.
"Hoje muitos contratos de programa não têm metas e os balanços das companhias estaduais não detalham o que é investido em cada município. Deverá haver obrigação de discriminar os investimentos por cidade", diz Carlos Henrique Lima, presidente do conselho de administração da Águas do Brasil, que opera em 14 municípios.
Segundo o executivo, a expectativa é que a participação de mercado do setor privado na prestação de serviços de água e esgoto chegue a 40%.
A lei também atribui poderes à Agência Nacional de Águas (ANA), que deverá elaborar diretrizes gerais para o setor, com a previsão de que as licitações sejam realizadas em blocos de cidades a serem agrupadas de modo a garantir a viabilidade econômica dos contratos.
Embora os municípios continuem como os entes competentes pela regulação do saneamento, a nova lei estipula que as cidades que não seguirem as diretrizes da ANA não receberão recursos públicos nem poderão fazer modelagem de concessões com ajuda de bancos públicos, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
"As coisas não vão acontecer neste ano. A ANA vai precisar de pelo menos seis meses para se estruturar para cumprir esse papel", diz Lima.
"A construção regulatória vai além da lei. Falta, por exemplo, um decreto que estipule critérios para sobre como será feita a indenização de ativos que não foram amortizados ao longo do contrato", diz Rodrigo Bertoccelli, sócio do escritório Felsberg.
Uma regra mais clara poderia dirimir ou evitar conflitos sobre indenizações devidas por um município a uma companhia estadual por investimentos que eventualmente não tenham sido pagos até o vencimento de um contrato de programa.
Também falta definir os critérios que para que um concessionário possa pleitear o reequilíbrio financeiro do contrato caso enfrente problemas não previstos no contrato da concessão, segundo Bertoccelli.
Para Marcus Vinicius Neves, presidente da Aesbe (associação das companhias estaduais de saneamento), a regulamentação da lei não deveria ser feita por decreto.
"Isso traz um componente de insegurança, porque os decretos são de autoria do governo federal de turno", diz.
Teresa Vernaglia, presidente da BRK, maior empresa privada do setor, estima que a regulamentação deverá ser concluída até o fim deste ano.
Para a executiva, é só depois disso que haverá maior lançamento de projetos de saneamento.
Para Radamés Casseb, presidente da Aegea, que hoje presta o serviço em 57 municípios, a espera será maior.
"O nascimento de projetos decorrentes do novo marco ainda deve levar de três a cinco anos para virem ao mercado, sejam parcerias público-privadas ou concessões plenas, leva um tempo para estruturar. Os projetos que temos agora levaram anos para serem modelados", afirma.
Hoje, o projeto que mais chama a atenção do segmento é a concessão da região metropolitana de Maceió, que reúne 13 municípios. O edital prevê investimentos de R$ 2,6 bilhões. O contrato será de 30 anos e o leilão será em setembro.
Outro projeto já lançado é a PPP (parceria público-privada) de Cariacica (ES), que prevê investimentos de R$ 1,34 bilhão no sistema de esgoto em duas cidades. O edital foi publicado no último dia 18.
Entre as licitações em gestação, a maior é o lote de concessões da Cedae, que deve ser lançada nos próximos meses.
A licitação vai dividir o estado em quatro blocos de municípios, todos com alguma região da capital, de modo a garantir a atratividade de áreas menos rentáveis. O projeto prevê investimentos de R$ 33 bilhões ao longo de 30 anos.
Percy Soares Neto, diretor-executivo da Abcon, diz que a demanda por investimentos e a resiliência do setor de saneamento em épocas de crise como a atual, provocada pela pandemia do coronavírus, deverá atrair investidores, inclusive internacionais.
"A demanda por água sofre pouco com crises econômicas. Energia e transporte caem muito mais em recessões, o saneamento se mantém. Além disso, o Brasil terá um conjunto grande de brasileiros que passarão a integrar essa categoria de consumo [de água tratada]", afirma.
"O saneamento tem se mostrado resiliente nessa crise, a inadimplência não mudou muito. Para o investidor que busca projetos de longo prazo, o setor pode oferece isso. O marco garante segurança regulatória", diz Bertoccelli.
A taxa Selic nos patamares mais baixos da história reduzem a atratividade de investimentos como fundos de renda fixa, mas aumentam a de setores de infraestrutura, segundo o advogado.
Gustavo Guimarães, presidente da Iguá, empresa que administra 18 contratos de saneamento no país, afirma que a entrada de investidores internacionais deverá ser uma tendência.
"Tem um interesse do capital financeiro de vir e empresas internacionais. As empresas brasileiras de menor porte certamente são alças de entrada no setor", afirma.
"Quem olha de fora, vê que o mercado tem receita hoje de R$ 60 bilhões ao ano, mas terá com a universalização dos serviços algo me torno e R$ 110 bilhões. Não há no mundo um negócio que agregue isso em cerca de 10 anos. É por isso que correrão para cá operadores e investidores internacionais", diz Carlos Henrique Lima.
Segundo ele, sociedades entre operadores nacionais e estrangeiros, além de fusões e aquisições, devem aumentar.
Luís Antônio de Souza, sócio do escritório Souza, Mello e Torres, diz que o setor tem atratividade baixa para estrangeiros.
"É um setor muito difícil, que demanda muito capital no início das concessões, para construir a estrutura necessária à prestação dos serviços. As tarifas não trazem grande rentabilidade, mas uma combinação entre recursos privados e suporte de governo podem atrair investidores", afirma.
"O novo marco é importante, traz possibilidade de planejamento federal para o setor e permite a divisão das áreas metropolitanas em grandes blocos, o que é um grande acerto", diz Souza.
O advogado Rubens Naves, especialista em saneamento, diz ver com ceticismo a atratividade do setor para investidores estrangeiros.
"As empresas privadas de saneamento vendem a ilusão de que basta abrir a concorrência que os recursos virão. Isso não é verdade, temos uma crise econômica e política, e um cenário de pandemia. Apenas investidores irresponsáveis vão aportar recursos no segmento da noite para o dia".
Para Naves, a nova lei deverá concentrar os serviços na mão de empresas privadas porque as estatais não têm capacidade de investimento imediato sem ajuda do governo federal.
"As companhias estaduais em sua maioria estão sucateadas. Mesmo as que conseguirem prorrogar os contratos não terão problemas para atingir as metas se não receberem capital. No fim, vão entregar os seus contratos às empresas privadas".
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