Rosângela dos Santos, Marli Silva e Damaris Paes compartilham a mesma profissão e as mesmas dificuldades: as três trabalhadoras domésticas perderam o emprego durante a pandemia e enfrentam piora em suas condições de trabalho e renda, mesmo após a flexibilização do distanciamento social proporcionada pelo avanço da vacinação.
A realidade das mulheres não é exceção entre a categoria. Levantamento da marca de limpeza Veja com a Plano CDE, divulgado no fim de dezembro, mostrou que 27% das trabalhadoras domésticas brasileiras foram demitidas durante a pandemia. Cerca de 40% continuaram a trabalhar, expondo-se aos riscos de contaminação pela Covid-19.
Uma minoria, 16%, pôde se isolar em casa e seguir recebendo o salário dos empregadores. A medida foi incentivada por uma campanha da Fenatrad (Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas), para que as trabalhadoras não se expusessem ao vírus no transporte público e nas casas das famílias contratantes, nos períodos de maior contágio.
Ganhou força ainda em março de 2020, quando uma doméstica contaminada após contato com a patroa tornou-se a primeira vítima do vírus no Rio de Janeiro. "Mas a adesão foi mínima", diz Luiza Baptista, coordenadora-geral da Fenatrad.
Mesmo as trabalhadoras beneficiadas pela decisão das famílias de manter os pagamentos enfrentaram dificuldades quando retornaram ao trabalho presencial.
Moradora de Salvador (BA) e doméstica desde os 14 anos, Rosângela, 33, foi surpreendida pela exigência de que trabalhasse aos finais de semana para compensar as horas pagas não trabalhadas durante os seis meses iniciais da pandemia.
"Não tinha sido combinado antes. Quando disse que não podia, o tratamento mudou completamente. Fui muito humilhada", diz. O caso foi parar na Justiça do Trabalho, e Rosângela está desempregada desde então.
Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mostram que o desemprego, o aumento da informalidade e a perda de renda atingiram duramente a categoria nos dois anos de pandemia. Cerca de 6,4 milhões de brasileiros trabalhavam em serviços domésticos no Brasil em 2019: 92% eram mulheres, e 65%, negros. Ao final de 2020, após 1,5 milhão de demissões, a força de trabalho contratada foi reduzida para 4,9 milhões.
As contratações foram retomadas em 2021, mas ainda estão distantes do patamar anterior. Em outubro, o país contabilizou 5,5 milhões de brasileiros ocupados no trabalho doméstico, 4,1 milhões sem carteira assinada.
Os registros em carteira cresceram de 1,2 milhão para 1,3 milhão nos 12 meses anteriores. Mas o rendimento médio de registradas e informais caiu no período: de R$ 979 no trimestre de agosto a outubro de 2020 para R$ 929 no mesmo trimestre de 2021.
Em São Paulo, o piso da categoria é R$ 1.296,32 ao mês, para 44 horas de jornada semanal. Diárias variam de R$ 100 a R$ 200, a depender da região e tamanho da casa.
A queda nos postos de trabalho e nos salários foi acompanhada por aumento no custo de vida, em razão da inflação, redução nos momentos de lazer e convívio social e pela ampliação das exigências e da sobrecarga.
A pesquisa de Veja e Plano CDE, que ouviu 522 trabalhadoras em todo o Brasil, mostra também que diaristas que realizam faxina tiveram menor frequência de diárias contratadas, o que culminou em queda na renda e maior carga de limpeza acumulada a ser feita.
As trabalhadoras relatam ainda a incorporação de novas obrigações na rotina de trabalho pandêmica, como o requisito de banho e troca de roupa obrigatória na chegada aos postos de trabalho, higienização de todas superfícies tocadas e, em diversos casos, custeio de equipamentos de proteção como máscara e álcool em gel do próprio bolso.
Relatos de assédio moral e sexual e exposição a "testes de confiança" (em que o empregador filma a funcionária sem autorização ou deixa dinheiro em espécie à vista para testar sua honestidade, por exemplo) também tornaram-se reclamações mais comuns durante a pandemia, diz a pesquisa.
Marli Silva, 45, foi dispensada da família em que trabalhava como babá, sem registro, assim que a crise sanitária eclodiu. Após meses à procura de um novo posto, passou a cobrir a folga de colegas aos finais de semana, em diferentes casas. Em uma delas, soube por outro funcionário que a família e as crianças estavam com Covid-19.
"Eles estavam precisando muito de alguém para cuidar da família deles, mas não tiveram nenhum cuidado com a minha", diz ela, que tem uma filha com doença rara e marido com câncer. Ambos fazem parte do grupo de risco para a Covid-19. Marli passou a se isolar após os turnos e se diz aliviada por ter encontrado uma nova empregadora, que a manteve afastada quando o exame das crianças deu resultado positivo para a doença.
Janaína Mariano, presidente do Sindoméstica (Sindicato das Empregadas e Trabalhadoras Domésticas da Grande São Paulo), diz que a maioria dos conflitos em que a entidade foi acionada para mediar durante a pandemia caracteriza-se por fraudes relacionadas à medida provisória 936, que criou o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda.
"São empregadores que fizeram contratos de redução ou suspensão da jornada da funcionária, mas mantiveram-nas trabalhando integralmente e usaram o valor repassado pelo governo, originalmente destinado à funcionária para compensar sua perda de renda com a redução da jornada, para pagar o salário", diz.
Na prática, segundo a dirigente, o dinheiro público do benefício destinado à redução da jornada era usado para baratear, para o empregador, a manutenção da funcionária em jornada integral. Os casos foram judicializados e são investigados.
Apesar das dificuldades impostas pela pandemia e que fragilizaram ainda mais o trabalho da categoria, 56% das domésticas ouvidas no levantamento nacional disseram ter uma boa relação com os patrões.
"Com o atual cenário econômico, muitos empregadores também perderam seus postos de trabalho e tiveram que dispensar as domésticas, que enfrentam agora o desemprego e informalidade."
Damaris Paes, 53, trabalhava havia cinco anos na casa de uma família americana na Vila Mariana, na zona sul de São Paulo. Cuidava do menino da família e auxiliou com a limpeza quando a faxineira foi dispensada. "Sempre gostei de trabalhar de doméstica e a família era ótima comigo", diz.
A empregadora, no entanto, recebeu uma oportunidade de trabalho em seu país natal e, preocupada com a condução da pandemia no Brasil, decidiu retornar aos EUA.
Damaris ficou sem emprego e decidiu pausar a atividade profissional enquanto procura outra boa oportunidade e faz tratamento para a coluna, fragilizada pelo trabalho físico intenso demandado pela atividade doméstica, que exerce desde os dez anos de idade.
"Mas sei que poder parar não é uma opção para a maioria das colegas. A crise afetou muito nosso trabalho. As famílias querem alguém, mas, para a gente, não está valendo a pena."
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