Após meses de negociação e adiamentos, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou nesta segunda-feira (4) o envio ao Congresso de um projeto de ´lei com regras para o trabalho de motoristas de transporte de passageiros que atuam por meio de aplicativos.
A proposta agora segue para avaliação do Senado e da Câmara — ou seja, depende do Congresso para entrar em vigor e pode ser alterada durante a tramitação.
Quais são os principais pontos do texto que o governo Lula envia ao Congresso, segundo as informações divulgadas pelo Palácio do Planalto até a publicação desta reportagem?
Jornada de Trabalho: o período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar 12 horas diárias e, para receber o piso nacional, o trabalhador deve realizar uma jornada de 8 horas diárias efetivamente trabalhadas.
Remuneração: o trabalhador receberá R$ 32,09 por hora de trabalho, segundo o projeto.
O valor por hora efetivamente trabalhada é dividido entre a chamada remuneração (R$ 8,02/hora ou 25%) e a cobertura de custos (R$ 24,07/hora ou 75%), que é indenizatória e destinada a cobrir despesas com utilização do celular, combustível, manutenção do veículo, seguro, impostos, entre outros.
Segundo o Palácio do Planalto, é prevista uma remuneração de, ao menos, um salário mínimo (R$ 1.412).
Nova categoria trabalhista: o projeto de lei propõe criar uma nova categoria para fins trabalhistas, o "trabalhador autônomo por plataforma".
Previdência: os trabalhadores devem recolher 7,5% sobre os valores referentes à remuneração e os empregadores devem recolher 20% sobre os valores referentes à remuneração.
A "remuneração" corresponde a 25% da hora paga – ou seja, R$ 8,02/hora.
As empresas devem realizar o desconto e repassar para a Previdência Social, juntamente com a contribuição patronal, segundo a proposta do governo.
O governo destaca que, no caso do auxílio-maternidade, as mulheres trabalhadoras terão acesso aos direitos previdenciários previstos para os trabalhadores segurados do INSS.
Segundo o Palácio do Planalto, o projeto é resultado de acordo de um grupo de trabalho criado em 2023, coordenado pelo Ministério do Trabalho, que contou com representantes dos trabalhadores, das empresas, e do governo federal.
Na cerimônia no Palácio do Planalto nesta segunda (4), Lula destacou a criação de uma nova modalidade de trabalhador.
"Foi parida uma criança nova no mundo do trabalho. As pessoas querem autonomia e vão ter. Mas, ao mesmo tempo, resolveram acordar com os empresários e com o governo de que eles querem autonomia, mas precisam de um mínimo de garantia", disse o presidente.
"Há algum tempo atrás, ninguém neste país acreditava que seria possível estabelecer uma mesa de negociação entre trabalhadores e empresários e que o resultado dessa mesa fosse concluir por uma organização diferente no mundo do trabalho", acrescentou.
Em seu discurso, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, disse que havia uma "falsa" sensação de liberdade no setor "porque os trabalhadores estavam sendo escravizados por longas jornadas e baixa remuneração".
Marinho confirmou que os trabalhadores poderão estar vinculados a quantas plataformas desejarem e continuarão podendo organizar seus rendimentos.
O ministro reconheceu que o governo ainda não conseguiu chegar a um consenso com empresas e trabalhadores de entrega em moto.
"Ainda restam os aplicativos das entregas, dos trabalhadores, dos motoboys, dos motociclistas. Ainda não checamos lá. E talvez seja uma categoria mais ainda sofrida do que os companheiros que aqui estão", disse Marinho, citando depois um "modelo de negócio altamente explorador".
O ministro disse que Lula fez compromisso, em campanha eleitoral, de regulamentar trabalho por aplicativo, mas afirmou que "nunca dissemos será pela CLT ou não, é um processo de debate".
Em um evento que contou com discurso apenas de homens e a um palco que naquele momento tinha 14 homens e duas mulheres, Marinho fez referência ao mês da mulher e disse: "Vim até de camisa rosa em homenagem às mulheres".
Motoristas e motoboys que trabalham por meio de aplicativos recebem valores menores por hora – e trabalham, em média, mais horas por semana – do que colegas que atuam fora das plataformas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Veja salários aqui.
A pesquisa também mostrou que os trabalhadores de plataformas estão menos protegidos pela Previdência do que os demais trabalhadores no setor privado.
Só 23,6% dos motoristas de app faziam contribuições à Previdência – o que significa que mais de sete em cada dez estavam desprotegidos pelo INSS. A taxa para motoristas que atuavam fora de plataformas era de quase 44%.
Em entrevista à BBC News Brasil em 2023, o diretor do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para o Brasil, Vinícius Pinheiro, já havia defendido a necessidade da regulação do trabalho em plataformas e argumentou que novas regras não afastariam empresas do país.
"Não é possível que tecnologias do século 21 coexistam com condições do século 19", disse.
Paralelamente, a relação entre motoristas e plataformas também está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF).
No fim de fevereiro, foi formada maioria de votos a favor da chamada repercussão geral de um julgamento que discute o tipo de vínculo entre motorista e plataforma.
Assim, uma futura decisão da Corte sobre o tema terá amplo alcance e será válida para todos os casos semelhantes.
Desde o primeiro ano de governo, a equipe de Lula vem discutindo o tema — uma promessa de campanha. O anúncio da proposta, no entanto, vem depois do prometido pelo Ministério do Trabalho.
O trabalho por meio de aplicativos foi mencionado no plano de governo de Lula, enquanto era candidato, em 2022.
O documento dizia que sua gestão revogaria o que chamou de "marcos regressivos" da legislação trabalhista e dizia que o governo pretendia propor "uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com especial atenção aos autônomos, aos que trabalham por conta própria, trabalhadores e trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores em home office, mediados por aplicativos e plataformas".
No início do governo, em 2023, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, chegou a dizer que uma proposta de regulamentação seria finalizada ainda no primeiro semestre daquele ano. Depois, sem acordos nas conversas entre empresas e trabalhadores, a divulgação da proposta teve adiamentos.
Em seu discurso nesta segunda, Marinho reconheceu a demora. "Eu nunca tinha participado de uma negociação que a redação demorasse tanto", disse.
Durante viagem aos Estados Unidos em 2023, Lula disse que, muitas vezes, ocorre o que ele chamou de "trabalho quase escravo" em plataformas.
Os desafios trazidos pelo trabalho por plataforma – uma modalidade que não se enquadra em todas as características de empregados tradicionais e tampouco de autônomos da forma que conhecemos – vêm afetando diversos países.
O número de plataformas digitais de trabalho quintuplicaram em todo mundo na última década, segundo relatório da OIT de 2021.
Em países como Chile e Espanha, foram criadas leis que garantiram direitos específicos para a categoria. Na França, a legislação exige que as empresas ofereçam determinados seguros aos trabalhadores. Já no Reino Unido, a decisão sobre direitos da categoria tem ficado na mão dos tribunais.
Leia nesta reportagem os principais caminhos que governos e cortes de justiça na Europa e na América Latina estão tomando – e onde trabalhadores de aplicativo encontram regras que hoje garantem mais direitos do que no Brasil.
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