A disseminação de sistemas de teletrabalho, desde o início da pandemia, alterou o cálculo de profissionais, corporações e países quanto a novas oportunidades de mobilidade global.
Só no Brasil, de 13 a 19 de setembro, 10% da população ocupada, ou 7,8 milhões de trabalhadores, atuava profissionalmente via teletrabalho, conhecido como home office, segundo o IBGE. Em julho, eram 8,4 milhões de trabalhadores nessa situação.
A ameaça sanitária e o fechamento de fronteiras também promoveram a repatriação de técnicos e executivos estrangeiros para seus países de origem, de onde seguiram atuando junto às ex-equipes, agora à distância.
Com isso, a proliferação do home office, improvável em tamanha escala antes da Covid- 19, acelerou aspirações desenhadas para um futuro distante chamadas de "work from anywhere" (trabalho a partir de qualquer lugar), sem que esse salto fosse acompanhado dos marcos regulatórios correspondentes, levantando questões migratórias, trabalhistas, tributárias e até criminais.
Entre as novas tendências estão dois modelos em que contratante e contratado estão em países diferentes: o chamado "virtual assignments" (contratação virtual de alguém em outro país) e o nomadismo digital, trabalho remoto desempenhado por viajantes que atuam remotamente de qualquer lugar do mundo via internet.
"No momento em que você cruza fronteiras, envolve duas legislações trabalhistas e fiscais, e é preciso estabelecer parâmetros para que não haja dupla tributação da renda do trabalho", explica a advogada Diana Quintas, sócia da Fragomen, uma das maiores empresas de imigração do mundo.
"Esse tipo de arranjo é uma tendência global, e os debates têm ocorrido intensamente", afirma ela, que é vice-presidente da Associação Brasileira de Especialistas em Migração e Mobilidade Internacional.
Pesquisa de 2020 da consultoria norte-americana Airinc apontou que 64% das 155 empresas internacionais consul- tadas observaram um aumento da demanda de funcionários por arranjos de trabalho que passem longe dos escritórios.
Só 3% delas, porém, tinha política de recursos humanos instituída para dar conta do novo cenário. E, para 58% des- sas corporações, a contrata- ção virtual (virtual assignment) deve aumentar já neste ano.
De olho nessa tendência, em junho a Estônia se tornou o primeiro país a adotar uma legislação específica para que estrangeiros possam trabalhar a partir de seu território.
Conhecido pelo alto grau de digitalização e pelo uso intensivo de blockchain (tecnologia que permite o registro de transações em criptomoedas), o país criou um visto para que pessoas possam viver um ano lá enquanto trabalham para outros países.
A ideia circula naquele país desde 2018, quando a presidente Kersti Kaljulaid tuitou que "o trabalho não é um lugar aonde você vai, é o que você faz. Governos e Estados precisam se ajustar ou a nova geração digital vai pular fora".
Em julho foi a vez de a ilha de Barbados, no Caribe, criar um visto temporário de um ano para permitir que estrangeiros residam à beira do mar turquesa enquanto trabalham para fora de suas fronteiras.
"Sabemos que as pessoas estão trabalhando remotamente, às vezes em condições extremamente estressantes, com poucas opções de férias. E nosso visto de 12 meses permite a essas pessoas se realocar para trabalhar a partir de um dos destinos turísticos mais queridos do mundo", declarou a primeira-ministra da ilha, Mia Amor Mottley.
Em agosto, foi a vez de as Bermudas, no Atlântico Norte, se abrirem para esse tipo de trabalhador remoto estrangeiro, criando visto e regulação específicas para recebê-los.
O pagamento de uma taxa e a comprovação de renda estável são alguns dos pré-requisitos para a aprovação dos novos vistos nesses países, que buscam largar na frente na regulamentação de um arranjo de trabalho agora mais possível do que nunca e ao mesmo tempo aplacar as perdas significativas da indústria do turismo. Afinal, os novos moradores estrangeiros farão suas despesas cotidianas nos diversos setores do novo território.
"Ainda é cedo para análises, mas, com essas iniciativas, esses países estão apontando para uma realidade que requer a regulamentação de questões de tributação, o que precisa ser discutido e requer cooperação entre países", diz Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV-SP.
"Trata-se da tentativa de adiantar um posicionamento que, cedo ou tarde, outros países devem adotar, não apenas graças aos avanços tecnológicos mas pela crescente aceitação social de que é possível assumir funções corporativas de maneira remota."
Segundo Stuenkel, a pandemia forçou multinacionais a adaptar processos que antes envolviam cargos e funções estratégicas com viagens intercontinentais semanais.
"Muitas empresas descobriram que a produção funcionava sem isso, o que mostra que algumas ineficiências serão reduzidas nas cadeias globais de produção em que havia inércia organizacional."
Diana Quintas explica que funcionários deslocados internacionalmente recebem benefícios como ajuda com aluguel, pagamento da escola dos filhos ou mesmo apoio para a carreira do cônjuge.
"De um dia para o outro, essas empresas tiveram de encarar que o trabalho remoto seria um fato e, com o tempo, perceberam que ele funcionava."
"Hoje, as empresas estão questionando tanto a necessidade de retorno aos escritórios como do deslocamento de executivos e técnicos para filiais em outros países."
Na prática, diz ela, as corporações deixaram de pagar esses benefícios ao expatriados durante a pandemia, o que gerou uma economia de recursos importante.
O Brasil, que abriga cerca de 1 milhão de estrangeiros e tem cerca de 3 milhões de cidadãos brasileiros morando e trabalhando no exterior, ainda não deu sinais de movimentação em torno da mudança em curso.
"Hoje, qualquer prestador de serviço para o Brasil precisa estar aqui para ir à Polícia Federal e fazer um registro que lhe permita entrar na folha de pagamento das empresas, quando isso deveria estar regulamentado de modo a ser feito remotamente", aponta.
"Sem essa regulamentação, não é possível controlar quem trabalha para as empresas do Brasil", explica ela, evidenciando um dos aspectos da falta de normas a respeito do trabalho remoto internacional, seja de estrangeiros ou mesmo de brasileiros.
A jornalista Yasmin Wilke, 28, mora em Estrasburgo, na França, com o cozinheiro Rodrigo Ueta e trabalha com cria- ção de produtos digitais para uma empresa com sede em São Paulo e um braço em Berlim.
"Tenho muito medo de, acidentalmente, estar cometendo alguma fraude que eu não saiba, por isso sou muito cuidadosa com as minhas finanças", conta ela, que considera novas andanças globais com o companheiro, depois de uma passagem pela Nova Zelândia antes da França.
"Posso manter meu trabalho se quisermos mudar pra Indonésia ou para o Japão", conta.
"Sou geograficamente independente, na medida do possível", diz ela, apontando como maior empecilho dos planos de deslocamento do casal os cuidados com o gato Pudim, que os acompanha desde o Brasil e tem até passaporte europeu, mas, afirma, daria muito trabalho na mudança.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta