"Se a partir de amanhã vocês me virem de avental e boné na cozinha de casa, não estou maluco" foi a mensagem que o chef confeiteiro Henrique Rossanelli enviou aos colegas de apartamento em abril deste ano.
Fazia um ano que estava se preparando para trabalhar em restaurante no Canadá, mas a pandemia e o consequente fechamento das fronteiras o obrigaram a mudar de planos.
Rossanelli, 28, paulista que mora no Rio, trabalhou em restaurantes por 13 anos antes da Covid-19 e dava aulas de confeitaria presenciais esporadicamente. Ao decidir surfar a onda do ensino digital para dar aulas, ele se juntou ao colega Igor Oliveira, 26, que também havia sido afastado do restaurante em que trabalhava como gerente.
O confeiteiro conta que, quando se demitiu do último restaurante estrelado em que trabalhou, seu chef disse: "E agora? Você vai vender quentinha pelo Instagram?"
Rossanelli hoje vende comida no Instagram e diz estar mais realizado financeiramente. "Por enquanto, o restaurante dele está fechado devido à pandemia. Parece que a gastronomia está mesmo virando de cabeça para baixo."
O primeiro dilema dos colegas surgiu quando perceberam que outros chefs estavam ensinando suas receitas gratuitamente em lives nas redes sociais. O plano era cobrar pelas aulas na plataforma Zoom e fazer do projeto sua nova fonte de renda.
Depois de passar boa parte da carreira trabalhando em restaurantes de alta gastronomia do Brasil, Rossanelli também precisou montar uma cozinha de verdade para trabalhar em casa. "Não tinha batedeira, meu forno e minha geladeira eram horríveis", diz.
Na estreia do curso virtual, conseguiram quase 90 participantes. Tudo funcionou, os alunos faziam as perguntas pelo chat enquanto a produtora da dupla, Renata Gebara, selecionava as mais pertinentes e Rossanelli ia respondendo no desenrolar das aulas, que são quinzenais.
Ele conta que, com o sucesso das aulas, foi se apropriando da nova forma de trabalhar. "Não estava dividindo receitas em lives, mas sim, compartilhando meu olhar e meu conhecimento com as pessoas."
Hoje, seu apartamento tem três geladeiras, batedeira e forno novos - além de preparar as aulas, eles produzem tortas para vender no Rio.
Rossanelli diz que a pandemia mostrou que até mesmo a gastronomia pode ser ensinada virtualmente. "Está dando certo para cada um preparar as sobremesas em suas casas. É a Netflix da gastronomia."
A chef paulistana Bel Crozera, 37, que estava prestes a iniciar um novo trabalho no comando do Bar dos Arcos, no Theatro Municipal, também teve que suspender seus planos com a chegada do vírus.
"Não achei a situação sanitária segura para trabalhar. O restaurante não tinha a ventilação necessária nem mesmo para contexto sem pandemia."
Resolveu se juntar a dois amigos, Lucas Caboatan, 22, e Felipe Tamanhoni, 28, que também estavam afastados dos restaurantes em que trabalhavam, e juntos criaram uma marca de comidas caseiras para entrega.
Começaram a trabalhar na casa da chef, mas logo perceberam que a estrutura era limitada. A solução foi alugar um espaço equipado exclusivamente para o preparo da comida, sem um salão físico para o cliente se sentar e permanecer ali, a chamada "dark kitchen", ou cozinha fantasma. "A gente se sentiu mais uniformizado para fazer acontecer. Uma tábua de cozinha profissional não é uma tábua de cozinha de casa. Faz diferença."
A chef também afirma que as "dark kitchens" eliminam questões burocráticas de um espaço tradicional e, da noite para o dia, é possível ter uma cozinha funcionando.
Crozera acredita que certos processos que surgiram durante a pandemia ficarão. É o caso dos protocolos de vigilância sanitária, que exigem higienização de embalagens e uso de máscara para cozinhar. "A máscara não protege o cozinheiro e a comida apenas da Covid, mas de diversas infecções."
Para ela, questões de produção também serão modificadas. "Dificilmente um cozinheiro vai aceitar trabalhar 12 horas numa cozinha sem janela como acontecia antes. Ignorávamos questões de saúde."
Certos comportamentos do ambiente gastronômico também são preocupações da chef Bel Coelho. Para ela, a maioria das pessoas encara a gestação e o período de amamentação no mercado de trabalho como se fosse um problema da mulher, e não da sociedade.
A experiência de um menu degustação entregue na casa do cliente, na opinião de Bel Coelho, entretanto, nunca vai substituir a experiência presencial. "O menu degustação precisa do serviço. Existe uma harmonização, precisa do chef explicando o prato e de uma louça adequada."
Segundo ela, a experiência da alta gastronomia no salão é como uma vivência de arte. "Alimenta a alma como um artista visual, como a música e a literatura. Isso não vai morrer."
O Clandestino, restaurante que ela abriu há sete anos na capital paulista, fechado temporariamente por causa do coronavírus, tinha menu degustação com preços entre R$ 290 e R$ 440. Coelho diz que a pandemia lhe fez pensar: "Será que se diminuirmos toda a pompa da alta gastronomia, conseguimos produzir algo mais acessível?"
Para Bel Crozera, a experiência do delivery que a pandemia forçou os restaurantes a vivenciar vai modificar a experiência presencial. "Tudo o que acontecia fisicamente no restaurante precisa agora ser traduzido em tempo de entrega e embalagem", comenta. "A maneira que a empresa está se comunicando com você não é mais olhando no seu olho, é te entregando uma sacola."
Apesar de entusiasta da experiência presencial, ela aposta que o cliente vai pensar duas vezes antes de ir a um restaurante. "Sei que as pessoas vão questionar o valor que pagavam, já que podem ter a experiência em casa por um preço menor."
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