A nova tentativa do governo Jair Bolsonaro (sem partido) de pedalar o pagamento de precatórios coloca em risco o acerto de dívidas da União com aposentados e pensionistas do INSS, com servidores e até com estados e municípios que aguardam o dinheiro do extinto Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério).
As dívidas de governos, sejam eles federal, municipal ou estadual, levam o nome de precatórios.
No caso das dívidas da União, o credor pode ser um cidadão que teve a aposentadoria negada pelo INSS, um ex-servidor federal que não recebeu um bônus previsto para sua categoria ou mesmo uma empresa que pagou mais impostos do que deveria. Quem derrota o governo na Justiça recebe o dinheiro por meio de um precatório.
Neste ano, boa parte dos precatórios incluídos na LOA (Lei Orçamentária Anual) vieram de decisões judiciais dos tribunais regionais federais. De R$ 46,4 bilhões carimbados para essas despesas, R$ 32,1 bilhões foram pagos no fim de junho pelo CJF (Conselho da Justiça Federal).
Ao todo, 173,6 mil pessoas receberam os valores, que foram discutidos em 109,3 mil processos. Desse total, R$ 17,7 bilhões eram precatórios de natureza alimentícia, ou seja, com origem em verbas das quais o cidadão depende para sobreviver, como salário, benefícios previdenciários, pensões e indenizações por morte ou invalidez.
Além do que é liberado por meio do CJF, há ainda os pagamentos feitos diretamente pelos tribunais superiores e pelos tribunais do trabalho e o dinheiro que é enviado aos tribunais de justiça, nos estados.
Além de pagar dívidas em que a União é parte, os tribunais estaduais fazem o pagamento de ações acidentárias, aquelas que discutem o pagamento de benefícios previdenciários por acidente ou doença do trabalho.
Para o ano que vem, o governo estuda manter em dia somente os pagamento de RPVs (Requisições de Pequeno Valor), que são pagas mensalmente pelos tribunais e tem valor limitado a 60 salários mínimos (R$ 66 mil neste ano). O orçamento desses atrasados judiciais fica entre R$ 10 bilhões e R$ 12 bilhões.
Segundo o ministro Paulo Guedes, da Economia, onde a proposta vem sendo gestada, o valor total de dívidas judiciais da União previsto para 2022 chega a quase R$ 90 bilhões. O Ministério da Economia não detalhou a origem dos valores.
Inicialmente, segundo a mudança em discussão, precatórios milionários, aqueles acima de R$ 66 milhões (60 mil vezes o salário mínimo), passariam a ser pagos com uma entrada de 15% e o restante em até nove anos.
O que o governo não definiu é como ficarão os pagamentos dos precatórios tradicionais -nem RPVs, nem "superprecatórios". Nesta terça (3), a secretaria de especial do Tesouro e Orçamento do Ministério da Economia fechou uma proposta que prevê um limite de R$ 455 mil para os pagamentos à vista, restringindo o parcelamento aos valores acima desse teto.
Os tribunais regionais federais fecharam no último dia útil de junho suas listas de precatórios que precisaram ser pagos em 2022. A proposta de orçamento do CJF será analisada no plenário do conselho nesta semana e prevê a necessidade de R$ 43,7 bilhões para os tribunais das cinco regiões.
O aumento nos pagamentos do que vem tem, em parte, pelo menos duas origens. Uma delas é o acerto de contas da União com estados por erros no cálculo do repasse do extinto Fundef entre 1998 e 2006.
Na LOA deste ano, o complemento do Fundef respondeu por apenas R$ 260,7 milhões. Para o orçamento de 2022, o STF encaminhou ao Ministério da Economia uma relação que soma R$ 16,6 bilhões em precatórios gerados por oito processos -R$ 15,5 bilhões referem-se aos processos ligados ao fundo de custeio da educação.
São ações iniciadas desde 2002 e que chegaram ao fim a partir de julho de 2020. Como a listagem de precatórios a serem pagas é gerada entre julho de um ano e junho do seguinte, essas dívidas ficaram para o orçamento de 2022.
As decisões vieram de ações propostas pelos governos de Bahia, Amazonas, Ceará e Pernambuco.
A outra fonte de aumento no volume de dívidas da União tem origem no STF, mas a consequência está nos tribunais federais. Em março de 2020, transitou em julgado (quando o processo é encerrado definitivamente) um recurso no STF que discutia a correção monetária de dívidas da Fazenda Pública.
O caso tinha repercussão geral e, por isso, muitos processos ficaram parados esperando a decisão final do STF. Advogados que atuam com processos de revisão e concessão de benefícios previdenciários viram seus precatórios mais do que dobrar -em número de ordens de pagamentos e em valores.
Arismar Amorim Jr, da Comissão de Direito Previdenciário da OAB de Osasco, diz que, de uma média de 50 precatórios anuais, ele teve 150 incluídos na proposta do próximo ano.
Para o advogado, a proposta em discussão pelo governo é uma manobra irresponsável. "Tenho clientes de 80, 90 anos, que já pensam em vender o precatório porque não quer esperar até o ano que vem. Imagine ter que receber parcelado, em dez anos", diz o advogado.
A venda de precatórios é um procedimento previsto na legislação. Para antecipar o recebimento do dinheiro, o dono da dívida transfere o precatório para um terceiro. Em troca, tem um deságio. De um precatório de R$ 100 mil, ele receberá entre R$ 65 mil e R$ 70 mil. Com a possibilidade de o governo esticar o pagamento desses precatórios, quem pensava em vender deve ter um prejuízo ainda maior.
"Sem a perspectiva de receber em 2022, quem compra passa a oferecer 40% a 50% do valor final", afirma Amorim.
Para o advogado Messias Falleiros , da Comissão de Precatórios da OAB-SP, a possibilidade de parcelamento dos precatórios é uma afronta à regra de pagamento.
O procedimento, se aprovado, ainda colocaria a União em uma espécie de regime especial, aquele em que os estados e municípios foram colocados como meio de garantir moratórias constitucionais para o acerto dessas dívidas. Desde 1988, já foram cinco renovações de prazos.
"A maior parte desses precatórios é alimentar e vem da discussão de impostos, de empresas que vão à Justiça cobrar créditos" diz
Em nota, o IBDP (Instituto Brasildeiro de Direito Previdenciário) afirmou que a maioria dos precatórios alimentares vêm de processos previdenciários e assistenciais "de pessoas que aguardam há anos pelo pagamento daquilo que lhes foi ganho judicialmente".
Para a entidade, adiar o pagamento para que usar o dinheiro para outros fins é "absolutamente inconstitucional"
O Conselho Federal da OAB divulgou nota na qual classifica a possibilidade de mudança no rito de pagamento uma "tentativa de desmontar a sistemática constitucional de pagamento" e diz que a proposta tem "contornos antidemocráticos, em amplo desrespeito aos direitos dos cidadãos brasileiros."
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