A empresa Samarco, que tem como acionista a Vale e a BHP Billiton, tem previsão de voltar a operar em Minas Gerais e no Espírito Santo até dezembro de 2020, cinco anos após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana.
Mas enquanto se prepara para a retomada, a empresa tem articulado junto com a Fundação Renova, criada para reparar os danos do desastre ambiental, uma tentativa de cortar o auxílio financeiro emergencial de 7 mil atingidos.
As atividades da mineradora estão paralisadas desde de novembro de 2015, após a barragem se romper e despejar 44 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério no rio Doce, no maior desastre socioambiental do Brasil.
A estimativa é que mais de 500 mil pessoas em 45 municípios de Minas Gerais e no Espírito Santo tenham sido impactadas, direta ou indiretamente, depois que a lama tóxica chegou ao rio Doce. O desastre deixou 18 mortos e 1 desaparecido.
A Samarco afirmou à reportagem que, "com a obtenção da licença de operação corretiva, em outubro de 2019, a empresa tem todas as licenças ambientais necessárias para reiniciar suas atividades".
No entanto, a empresa acionou a Justiça Federal do Espírito Santo para que houvesse a volta da atividade pesqueira na região da foz do rio Doce - o que foi negado.
Um dos argumentos tem como base uma nota técnica da Anvisa de 2019 que, segunda a mineradora, demonstra ser seguro o consumo de peixes e crustáceos capturados na foz do rio.
Mas a Justiça Federal discordou. "Não se extrai dessa manifestação oficial da Anvisa uma afirmação categórica quanto à segurança do consumo de peixes e crustáceos capturados na foz do rio Doce e região costeira adjacente, depois de a área ter sido atingida pelos rejeitos da barragem", diz a decisão.
A Anvisa avaliou a segurança do consumo das espécies capturados na foz do rio Doce sob a análise de oito metais --cádmio, cromo, cobre, chumbo, ferro, manganês, mercúrio, arsênio.
"Encontrando desconformidade com os limites máximos de segurança para três desses elementos, outra conclusão não há senão a de que quase 40% dos metais avaliados estão presentes em parcela das amostras de peixes e crustáceos examinadas, em níveis que ultrapassam aqueles definidos como seguros", aponta a nota técnica da Anvisa.
A Anvisa ressaltou que uma eventual liberação da pesca na região exigiria a adoção de medidas de controle e fiscalização. O recomendável seria restrigir o consumo diário a apenas 200g de pescado para adultos e 50g para crianças para minimizar o impacto à saúde pela ingestão de mercúrio e chumbo.
A agência deixa claro ainda que outros fatores não foram analisados, como a qualidade da água, o consumo da população local, estudos toxicológicos e o tamanho dos peixes coletados.
A Fundação Renova também tentou finalizar o pagamento do auxílio emergencial dos atingidos pelo desastre, comunicando o corte em carta enviada para 7.000 deles, em julho. Um dos argumentos era de que os dados obtidos pelo maior programa de monitoramento do país mostravam que "as condições da água são similares às de antes do rompimento".
"A comparação é possível porque, anteriormente, a qualidade das águas era analisada pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), que iniciou o monitoramento em 1997. Os dados mostram que, no período seco, os parâmetros estão, em alguns pontos, melhores do que os dados históricos", disse em nota.
A fundação teve de retroceder após o juiz federal Mário de Paula Franco Júnior (MG) determinar o imediato restabelecimento do pagamento do auxílio financeiro nos casos em tinham sido cancelados sob esse argumento.
Na decisão, o juiz afirma que não há conclusão científica e judicial sobre a segurança alimentar do pescado ou a qualidade da água.
"Não há estudos técnicos ou científicos validados no sentido alegado pela Renova. Aliás, tem-se que a matéria está sob análise judicial, inclusive com perícia em andamento no processo de reparação. A pretensão da Renova de unilateralmente declarar restabelecimento de áreas não encontra base validada de sustento", alegou.
Segundo o defensor público Rafael Mello Portella Campos (ES), mesmo após a volta do pagamento, os atingidos ainda vivem em um cenário de incerteza durante a pandemia do novo coronavírus.
"Embora suspensa a tentativa de corte do auxílio financeiro, vemos a Fundação Renova e as empresas obstinadas a forçar uma normalidade inexistente, ignorando a persistência dos impactos dos rejeitos na água, no pescado, da calha ao litoral", disse.
Uma das vidas que não voltaram ao normal foi a do pescador Domingos Ponche, de Colatina (ES).
"Eles queriam tirar nosso sustento em plena pandemia. Não tenho emprego, trabalho e preciso de dinheiro para sustentar meu filho, minha família. Não adianta nem dizer que o rio está em condição para voltar a pescar, ninguém compra o peixe do rio Doce", afirmou.
A profissão em sua família era passada de geração em geração, mas o desastre fez quebrar esse ciclo. O filho de 17 anos que todos os dias saía do colégio e ia pescar com ele passou a ficar mais tempo em casa.
A professora Simone Silva, de Barra Longa (MG), cidade a cerca de 60 km de Mariana, ainda espera reparação. A casa dela foi destruída pelos rejeitos de minério.
"Minha vida não voltou ao normal. Perdi avó e tio. Eles nunca mais poderão voltar para a região em que viveram, morreram de tristeza no ano passado", afirmou.
Outras duas decisões da Justiça Federal mineira reconheceram diversas outras categorias como atingidas em Naque (MG) e Baixo Guandu (ES). Eles serão contemplados com o pagamento integral de indenizações que variam de R$ 23,9 mil a R$ 94,5 mil.
Algumas das categorias são revendedores informais de pescado, comerciantes, artesãos, areeiros, carroceiros, agricultores, produtores rurais, associações, ilheiros e lavadeiras.
"Está mais do que provado que os atingidos sofreram inúmeros danos durante os cinco anos que já se passaram e ainda continuam sofrendo, pois sua saúde, moral, bem-estar, necessidade de alimentos, desenvolvimento sustentável do meio ambiente, vida financeira, entre outros, estão sendo abalados", diz uma decisão.
A Fundação Renova afirmou que até 31 de maio de 2020 foram destinados R$ 8,85 bilhões para as ações integradas de recuperação e compensação.
Cerca de R$ 2,51 bilhões foram pagos em indenizações e auxílios financeiros emergenciais para cerca de 321 mil pessoas.
Em relação a Barra Longa, foram realizadas mais de mil obras de recuperação de edificações, acessos e bens públicos, diz a empresa.
A fundação ressaltou ainda que, desde outubro de 2019, vem participando, com suas mantenedoras Samarco, Vale e BHP, de audiências na 12ª Vara Federal, em Belo Horizonte, para definir ações prioritárias para a reparação do rio Doce.
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