Um dos destaques na atualização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), cuja sexta edição foi lançada pela Academia Brasileira de Letras (ABL) no final de julho, é a inclusão do vocábulo "feminicídio". Quis o destino que a qualificadora dos assassinatos de mulheres ganhasse esse peso oficial na língua pouco menos de um mês antes de o Espírito Santo testemunhar o julgamento dos acusados de um crime que se tornou a marca do feminicídio no Estado: a morte violenta da médica Milena Gottardi.
Pode parecer uma associação despropositada, mas não deixa de ser um encontro de cronologias. Foi em 9 de março de 2015 que o governo federal sancionou a chamada Lei do Feminicídio, que alterou o Código Penal para estabelecer o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. A nova legislação também modificou a Lei de Crimes Hediondos, incluindo o assassinato de mulheres por questões de gênero em seu rol.
Não é exagero dizer que, desde então, está em curso uma revolução semântica que teve um importante impacto cultural: está cada vez mais claro na cabeça das pessoas, embora tantas ainda teimem em não querer entender, por falta de oportunidade, preconceito ou pura preguiça, o que transforma um assassinato em um feminicídio.
É o contexto da relação da vítima com o seu algoz — e as circunstâncias de violência prévia —, que determina que uma mulher foi morta em função das relações de poder estabelecidas entre os gêneros. Não só entre marido e mulher, mas pai e filha, irmão e irmã...
Sendo assim, a trágica morte de Milena Gottardi, em 14 de setembro de 2017, ou pouco mais de dois anos após a entrada em vigor da Lei do Feminicídio, tornou-se um exemplo fidedigno daquilo que a nova legislação estabelecia. Com as investigações, ficou simples entender, na prática, o que seria um feminicídio: Milena queria o divórcio de Hilário Frasson, então policial civil, mas se encontrou em um beco sem saída diante de um ex-marido possessivo, com dificuldade em aceitar o fim da relação, segundo a denúncia.
A médica não foi a primeira e, infelizmente, não será a última mulher a perder a vida por lutar por sua autonomia, um direito de qualquer pessoa. Mas as circunstâncias que levaram ao seu assassinato, cometido por uma terceira pessoa, são bastante didáticas para a compreensão desse crime. Milena foi uma vítima, mas seu fim trágico pode servir de exemplo, salvando tantas outras mulheres em situações análogas.
A carta registrada na qual desabafa sobre a relação abusiva com o então ex-marido tem um valor simbólico para todas as mulheres que já sofreram algum tipo de violência. Milena estava sob ameaça, temia pela vida das filhas, vivia uma agonia. “Ele me fez refém, refém dentro de casa", disse ela em um áudio gravado em seu apartamento, quando os sogros foram ao local tentar reverter a separação. Um relato do desespero.
Há tantas outras Milenas, neste momento, gritando silenciosamente por socorro. Em 2020, ano em que o isolamento social provocado pela pandemia aumentou o terror doméstico, o Brasil contabilizou 1.350 casos de feminicídio, um a cada seis horas e meia, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O mesmo levantamento registrou 26 casos somente no Espírito Santo, também no ano passado.
O júri popular, nesta segunda-feira (23), não vai ser aberto ao público, em função da crise sanitária. A previsão é de que o julgamento dos seis réus apontados como responsáveis pelo assassinato da médica dure uma semana, o que dá a dimensão desse caso. O papel de cada um deles na execução do crime será exposto, com direito à ampla defesa.
O caso Milena levou quase quatro anos para ir a julgamento. Um pesadelo para a família que terá uma conclusão, embora não aplaque a dor e a saudade. Em tantos outros casos a demora para se fazer justiça pode ser ainda maior. A morte de Milena teve repercussão por, ao que tudo indica (e o julgamento vai ajudar a esclarecer), ter sido uma trama forjada para mascarar as reais motivações do crime. Mas não é mais ou menos relevante do que as dezenas de mulheres que morrem todo ano no Espírito Santo em situações de violência doméstica, em crimes planejados ou não.
O júri do caso Milena tem tudo para ensinar ao público ainda mais o significado de um feminicídio, a tragédia familiar e social decorrente dessa palavra que, quanto mais bem compreendida por todos, mais pode ajudar a enfraquecer o machismo, esse mal estrutural que não para de ferir e matar mulheres. É hora de fazer justiça por Milena Gottardi.
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